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O perímetro da vergonha

Tal como manda a lei, a plataforma Journée Internationale des Femmes (JIF) pediu autorização à burgomestre da Cidade do Luxemburgo para, pelo terceiro ano consecutivo, organizar uma manifestação em 8 de março – a greve das mulheres. A JIF, um projeto aberto, dinâmico e participativo, agrupa uma vintena de membros (associações feministas, partidos políticos, sindicatos, etc.) empenhados em promover a causa da igualdade entre mulheres e homens. Como o mundo pouco mudou desde o ano passado, as reivindicações decididas para a edição de 2022 não surpreenderão ninguém: justiça salarial, fim da violência contra as mulheres, redução do tempo de trabalho, etc.[1]

A JIF foi depois informada de que, em 8 de março, as manifestantes não poderiam concentrar-se em frente à estação para se dirigirem à Place d’Armes, no centro da cidade, como pretendiam. Teriam de se conformar ao perímetro, entre os Glacis e a Philharmonie, definido pelas autoridades para este tipo de eventos, após os distúrbios verificados no centro da cidade, em 4 de dezembro de 2021, por ocasião das manifestações contra as medidas adotadas pelo Governo e pela UE para combater a pandemia, nomeadamente contra o passe sanitário.

Convém lembrar que os acontecimentos de 4 de dezembro foram um verdadeiro eletrochoque para a pacata sociedade luxemburguesa que despertou para um mundo que até então só vira nos ecrãs da televisão: o mercado de Natal invadido, rufias a trepar ao monumento nacional Gëlle Fra com cartazes nazis, confrontos violentos entre manifestantes descontrolados e forças policiais ultrapassadas pelos acontecimentos, etc. Retirar as manifestações do centro da cidade, limitando-as a um perímetro específico e facilmente controlável, foi uma resposta concreta e adequada a «circunstâncias excecionais», nas palavras do Ministro da Polícia, Henri Kox, e da burgomestre da Cidade do Luxemburgo, Lydie Polfer.

Entretanto, as forças policiais aprenderam algumas lições, as regras em matéria de luta contra a pandemia mudaram, o passe sanitário deixou de ser indispensável e as manifestações contra as medidas de combate à pandemia tornaram-se menos virulentas e foram-se esvaziando progressivamente. Por conseguinte, parece não haver motivos que justifiquem a manutenção do dito perímetro. É o que pensa muita gente, como se pôde ler e ouvir na comunicação social.

Porém, para minha tristeza, a JIF, que foi aos arames ao ver as autoridades camarárias recusar-lhe o percurso proposto para a manifestação de 8 de março, também brandiu argumentos falaciosos para o defender. O QUÊ?? Nós, as mulheres, sempre tão ajuizadas, com as nossas reivindicações tão justas e nobres, que nunca causámos distúrbios, que sempre organizámos as nossas manifestações na mais perfeita legalidade e em harmoniosa colaboração com a polícia, que até convocámos a concentração para as cinco da tarde precisamente para não incomodar ninguém, não vamos ser autorizadas a desfilar até ao centro da cidade? Estão a confundir-nos com os bandidos antivacinas ou quê??

«Que chateza…», suspirei eu, que sempre ouvi dizer que as mulheres bem-comportadas raramente ficam na história. «Que coisa é esta de querermos ser as boazinhas que, porque se portam bem, podem ir gritar para o centro da cidade ao contrário das bandidas que são confinadas ao perímetro da vergonha? E greve às cinco da tarde?? Bem… a vantagem é que a essa hora até os arruaceiros estão a lanchar…».

Parece-me que se continua a meter tudo no mesmo saco. Os distúrbios de dezembro foram atiçados por agitadores profissionais e por forças de extrema-direita que souberam manipular os medos e as frustrações humanas para atingir outros fins. Esses, foram neutralizados e punidos, e terão de ser novamente neutralizados e punidos se voltarem a atacar.

Mas não confundamos o trigo com o joio: entre os iniciadores e participantes em tais marchas e manifestações, na sua maioria legais e pacíficas, há gente de bem que não pode ser definitivamente votada ao ostracismo, nem posta de castigo voltada para a parede com orelhas de burro, como se fazia na minha escola primária. Há nomeadamente mulheres e homens, que, tal como a JIF, também anseiam por mais igualdade entre os géneros, melhores condições de trabalho, melhor equilíbrio entre obrigações profissionais e familiares, fim da violência sobre as mulheres, etc.

É pena que a JIF se tenha exprimido como se tivesse dois pesos e duas medidas. Quem reclama igualdade de direitos e, simultaneamente, pretende que a sua causa é mais nobre do que a causa de outrem está a dar um valente tiro nos pés e a exacerbar divisões, em vez de unir e criar pontes. Sublinhe-se que nem a Constituição do Grão‑Ducado do Luxemburgo[2] nem a lei estabelece qualquer hierarquia entre boas ou más razões para os cidadãos manifestarem – como o poderiam fazer?

Muito gostava eu que todas as forças vivas da nação, incluindo a JIF, se batessem pelo fim do perímetro!

E porquê? Por duas razões: uma, porque, repito, as circunstâncias excecionais que levaram à sua criação se alteraram substancialmente; a outra, porque se este perímetro provisório fosse transformado em perímetro definitivo e único para toda e qualquer manifestação, tal equivaleria a esvaziar de sentido o próprio direito de manifestar: uma marcha de protesto quer fazer ouvir as suas reivindicações e levá-las a um órgão de poder pertinente e é por isso que nenhuma marcha de protesto, seja a da JIF ou de qualquer outro proponente, se pode contentar com o perímetro autorizado entre os Glacis e a Philharmonie ou vice-versa. Para a polícia, este corredor é ótimo. Para os manifestantes, é como gritar no deserto: não está lá ninguém para ouvir. Francamente só o sindicato dos músicos poderia ter interesse em manifestar junto à Philharmonie….

Assim, espero que a JIF venha a poder levar as suas reivindicações ao centro da cidade, aos sítios que simbolizam o poder, bradando-as a alto e bom som, para serem ouvidas pelos transeuntes, pelos comerciantes, pelos condutores, pelos jornalistas, pelos políticos, etc. E se perturbarem as lojas, os restaurantes ou quem estiver a passear o seu cão, paciência! Para que serve uma manifestação que não incomoda – mesmo – ninguém??

Por isso, aguardo com curiosidade os resultados do encontro previsto para 22 de fevereiro entre as autoridades camarárias e a JIF. Porque, apesar de a burgomestre ser uma especialista em tirar água do capote, de preferência para cima dos ministros que não são do seu partido, é bem a ela que, segundo o regulamento geral de polícia[3] em vigor, compete tomar a decisão final sobre os percursos das manifestações na «sua» cidade.

Eduarda Macedo


[1]  Nos revendications | Fraestreik 2022

[2] Constitution du Grand-Duché du Luxembourg – Legilux (public.lu)

[3] Règlement général de police tel que modifié le 23 novembre 2015 (vdl.lu)

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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