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As árvores não morrem de pé

Eu tinha sete anos. Estava sentada no chão, meia escondida sob a mesa de jantar, o meu refúgio contra as emoções a preto e branco que jorravam da caixa mágica encostada ao canto da sala. Era noite de teatro. A história era complicada. A certa altura, entrou no palco uma senhora velha como uma trisavó. O público brindou-a com uma tal salva de palmas que pus a cabeça de fora do meu esconderijo e perguntei «Já é o fim?» «Não, ainda não» – tranquilizaram-me. «Palmira Bastos». Ficaram-me gravados na memória o nome e a figura daquela velha senhora, altiva como uma rainha, lançando com furor a réplica mais famosa dos palcos portugueses enquanto martelava o chão com a bengala: «Morta por dentro, mas de pé, de pé como as árvores!»[1].

Enganava-se Palmira Bastos quando pensava que as árvores morriam de pé. Enganei-me eu também ao pensar que só em Portugal se abatem de uma só vez e à sorrelfa centenas de sobreiros. As árvores da Avenue Pasteur, por exemplo, morreram ceifadas pela falta de visão e de sensibilidade da maioria política que governa a capital, que, muito modernamente, quer transformar a dita avenida numa via de sentido único e colar-lhe uma ciclovia bidirecional. E como as árvores iam estorvar as bicicletas, zás, cortaram-nas. Para a maioria, tal não representa problema algum: as árvores vão ser «compensadas» e os ciclistas sentir-se-ão decerto seguríssimos ao rasar os autocarros que, esses sim, vão passar a circular mais à vontade.

Para quem não a conhece, a Avenue Pasteur é uma das principais artérias de Limpertsberg, um bairro chique da cidade, que, para além da densa população residente, conta com o vai vem diário de milhares de estudantes, professores e demais pessoal dos múltiplos estabelecimentos de ensino que o bairro acolhe: Lycée technique du centre, Lycée Michel Lucius[2], Lycée de Garçons, Lycée des Arts et Métiers e Lycée Robert Schuman. É muito liceu para um bairro só.

Com as medidas sanitárias impostas pela pandemia, os restaurantes, cafés e bares saltaram para a rua. O troço inferior da Avenue Pasteur encheu-se de pequenas esplanadas a fervilhar de pessoas sequiosas de beber um copo com um amigo. Ao ar livre e à sombra das árvores. Os comerciantes ficaram felizes.

Insensível à transformação da atmosfera da avenida e convicto de que jamais poderia haver uma solução melhor do que o seu próprio plano, o executivo camarário[3] não se deu ao trabalho de olhar para a proposta apresentada pelos Déi Gréng (os Verdes) em 2021. Esta proposta pretendia desviar o percurso dos autocarros para transformar aquele troço da Avenue Pasteur numa zona partilhada, ou seja, uma zona aberta a peões, ciclistas, condutores moradores do bairro, etc. Desapareciam os passeios, ficavam as esplanadas, as árvores e alguns lugares de estacionamento. As bicicletas poderiam circular nos dois sentidos por toda a longa Avenue Pasteur, coisa que o plano do executivo camarário não prevê.

Por seu turno, a associação de defesa dos interesses dos ciclistas ProVelo, receia que as medidas irreversíveis agora aplicadas possam vir a gerar mais fricções entre peões e ciclistas. Lamentou que não tenham sido experimentadas soluções temporárias para que os ciclistas e os habitantes de Limpertsberg pudessem avaliar as respetivas consequências e, assim, pronunciar-se com conhecimento de causa sobre o que querem para o seu bairro.

No entanto, o executivo camarário parece ter uma noção muito particular do que é a participação dos cidadãos. Afirma assim que o plano decidido corresponde à vontade manifestada pelos cidadãos em várias consultas e aos resultados de um grupo de trabalho criado no seguimento dessas consultas. Dizem as más línguas que esse grupo de trabalho nunca se terá reunido. Enfim.

Numa das páginas Web do Governo[4] pode ler-se: «Dans les zones à trafic apaisé, la fonction résidentielle et de convivialité prime sur la fonction de desserte et de distribution automobile. Ces rues peuvent devenir un espace public attractif et de qualité, un lieu de rencontre, de détente, l’adresse et la carte de visite des résidents. Dans l’aménagement de nouveaux quartiers, les mesures urbanistiques priment sur les solutions techniques pour modérer le trafic. E não seria possível aplicar uma lógica semelhante aos bairros já existentes?

Para criar um tal espaço público atraente e de qualidade, não basta limitar a velocidade dos automóveis a 30 km, pintar bicicletas no chão ou fazer transformações urbanísticas pontuais para inglês ver. E saber que um número igual de árvores ao das árvores abatidas será plantado numa outra zona da cidade ou do país é fraca consolação para os moradores que deixaram de poder gozar da sua sombra.

Agradou-me o eco inusitado que o corte das árvores da Avenue Pasteur teve na imprensa luxemburguesa e não só. Se nada vêm remediar, estas reações indignadas podem alertar-nos para o futuro. É que esta situação pode repetir-se em outros recantos e projetos da cidade. E não estou só a pensar no que aconteceu agora em Limpertsberg, mas também em todos os simulacros de consulta dos cidadãos em que o executivo camarário rio é useiro e vezeiro quando se trata de arranjar alibis.

Este triste episódio do abate das árvores mexeu mesmo comigo. Prefiro que as árvores morram de pé.

Eduarda Macedo


[1] As Árvores Morrem de Pé – Parte I – RTP Arquivos

[2] Até ao final da década, o Liceu Michel Lucius mudar-se-á de Limpertsberg para o novo bairro de Kuebebierg no Kirchberg.

[3] O executivo camarário é composto pela burgomestre e por seis vereadores que, juntos, formam o Colégio dos Vereadores/Collège des échevins/Schäfferot. Todos pertencem aos dois partidos políticos que, coligados, governam a capital: DP e CSV.

[4] Apaisement du trafic – Secteurs – Portail TRANSPORTS – Luxembourg (public.lu)

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