De que está à procura ?

Colunistas

Sobressalto na madrugada ou “somos todos um”

© dr

“Pára Dévora, porque é que o teu coração bate tão rápido?”, digo eu para mim mesma e respondo: “Porque recebi boas notícias. Estes últimos sete anos foi sempre o oposto!”.
“Já passou!”. 

Estes são os diálogos que tenho tido nos últimos dias, comigo mesma. Lutei para nascer de novo, foi um parto difícil, mas foi.

Desde os meus 14 anos que sofro de doença renal crónica, que depois dos 20 desenvolveu-se para uma insuficiência renal crónica terminal com o começo do tratamento de hemodiálise. 

O primeiro transplante aconteceu dia 08/04/2012, um rim doado pela minha mãe. Foi canja, recuperação em 7 dias. Durou 12 anos.

No dia do meu aniversário, dia 30/10/2016 recomecei a fazer hemodiálise, com muita tristeza minha.

Os meus 30 anos passaram, 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37… e a esperança voltou. 

Desde o ano de 2018 que não urinava, apenas em sonhos a meio da noite, onde acordava sobressaltada e logo adormecia por não ser verdade.

Dia 14/04/24, às 03h30 da madrugada, estava eu deitada e o telefone toca. Número francês. Atendi antes do segundo toque porque já sabia o que era. “Bonsoir Madame Cortinhal, on vous a trouvé un rein, vous devez venir à Paris immédiatement”… e depois fazem-me uma lista de tarefas a serem cumpridas.

Próximo passo, telefonar para o meu incansável taxista Lopes. “Estou Mich, tenho de ir para Paris, encontraram um rim”. “Vou já, vou já”, diz ele apressado.

Desliguei o telefone respiro fundo, dou um grande abraço ao meu filho e ao meu marido, e vou buscar a mala que já estava pré-feita. 

A viagem de 300 kms até à cidade-luz foi feita rapidamente. 

No hospital, subimos ao andar da nefrologia, e lá me esperavam. Despeço-me do meu taxista, que me deseja as maiores sortes do mundo com um grande sorriso. 

Instalo-me, e faço as tarefas que me foram dadas pela enfermeira. O médico chega e a primeira pergunta que lhe faço, “É verdade?”, e ele responde que sim. 

Depois começa o bailado: banho, sabão, depilação, desinfeção, escovar os dentes…

Duas horas de diálise para limpar o sangue, higiene a 100% por dentro e por fora. 

De regresso ao quarto é a espera. Passam 3 horas e nada, carrego no botão vermelho que chama a enfermeira. “Já sabem alguma coisa?”. Com um sorriso ela respondeu: “Sim Madame Cortinhal, o seu rim está a chegar de TGV de Lyon, está a chegar.”. E eu ri-me da informação que me foi dada! E pensei, “Ah meu leão, é assim que te vais chamar El’Lyon!”. 

E, finalmente chegou!

O maqueiro direcionou-me para a sala de cirurgia com perícia pelos corredores apertados e brancos do hospital. Pelo caminho penso no meu filho e no meu marido. 

Já na sala, começa a dança de preparo para a cirurgia, dança com a qual já estou familiarizada e conheço-lhe todos os passos. O balão de oxigénio anuncia os momentos antes de adormecer, o anestesista pede para contar até 10, o meu corpo começa todo a arder com o líquido espesso da anestesia que me entra pelo braço direito. Luto contra o peso de querer fechar os olhos, a anestesia vence, e ouço as últimas palavras, “Bons sonhos madame Cortinhal.”

Acordo, ouço ao fundo a voz de uma mulher a dizer, “votre femme s’est réveillée, tout va bien”.

Abri os olhos, estava cega, só via luzes e um homem careca que insistia em dizer-me que estava tudo bem. Comecei a chorar e a sentir o meu corpo para ver se estava tudo no sítio. O careca volta e diz-me “está tudo bem, correu bem, estás transplantada”.

Pus a mão na barriga para sentir o Leão e logo lhe dou as boas vindas: “Por favor, cuida bem de mim, eu prometo cuidar bem de ti!”, e voltei a adormecer.

Às 5:30, de segunda-feira, acordo com as auxiliares no meu quarto a levantarem-me para ir tomar banho!  Eu respondi: “Ai, desculpe, mas deve ser engano, eu vim agora da cirurgia!” Elas riram-se, e na minha mente surgiu o ditado “parar é morrer”. Os franceses são lixados. Obedeci, sem forças. 

Passei quatro dias a chorar, com dores, com medo, com botões que se acionam no nosso interior que vêm lá das entranhas. As enfermeiras e auxiliares vinham dar-me a mão, consolar-me e dizer-me que estava tudo bem, “coragem…” 

O xixi começou a vir aos poucos, e as análises a estabilizarem. Começo a ficar positiva quando me tiram a algália, e vou a caminho da sanita para o meu primeiro xixi desde 2018. Como iria ser? Já não me lembro como se faz! Vai doer?

Sento-me na sanita e lá vai ele, e as lágrimas de felicidade escorrem-me pela face! Agora, o desafio era ensinar a bexiga a fazer xixi. Fiz xixi em todo lado, dava me vontade de ir até à torre Eiffel e fazer lá de cima! 

Resumindo, o meu nascer de novo foi difícil. Não querendo aqui expor todos os pormenores, lutei pela minha vida, assim como todas as pessoas que passam por um transplante de rim.

Agora a aventura continua, venci, mas não sozinha! 

No meu coração guardo palavras de gratidão, 
Obrigada ao meu marido e ao meu filho, 
Obrigado ao meu taxista, Mich, do Táxi Lopes, 
Obrigado aos meus chefes Raúl Reis e Ricardo Silva, 
Obrigada ao meu chefe de redação Luís Cruz e ao colega Álvaro Magalhães, 
Obrigado a todos os que me responderam com mensagens de apoio no Facebook e Instagram, 
Obrigada às minhas irmãs que estiveram presentes todo o tempo por telefone, 
Obrigada a todos os enfermeiros e auxiliares e médicos do Hospital Henri Mondor, são heróis sem capa e devo a minha vida a eles, 
Obrigada à pessoa que faleceu, mas que mesmo assim em vida usou de empatia e pensou que os seus órgãos poderiam vir salvar vidas após a sua morte! 
É com o maravilhoso sentimento de agradecimento que fecho esta minha história. 

Continua…

Dévora Cortinhal

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA