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No silêncio do elevador

Não me sais da cabeça. Hoje, então, acordei com a tua imagem ainda mais viva, saída de fresco do pesadelo que me assombrou a noite.

Foi no domingo de Ramos. Tinha dormido pouquíssimo, umas três horas, se tanto. Por mais que faça, acontece-me sempre o mesmo: em vésperas de partida, qualquer que seja o destino, é raro conseguir deitar-me a horas decentes. E, no entanto, tudo parecia bem encaminhado para, desta vez, poder iniciar a viagem do dia seguinte sem um défice de sono preocupante. Gozava por antecipação as nove horas de comboio que me esperavam, um tempo de estar comigo, de ler, de escrever, de encharcar os olhos nas águas do Reno a desfilar, cinzentas, pelos vidros da minha janela. Tinha dado a volta ao frigorífico, oferecido à vizinha a fruta e os legumes que não podiam esperar pelo meu regresso, esvaziado as jarras e posto as flores no lixo. Tinha lavado a louça, arrumado a papelada e os jornais amontoados sobre a mesa da sala e selecionado os livros que queria levar comigo, como se fosse ter tempo para os ler. Depois, entre telefonemas e hesitações quanto ao que meter na mala, o tempo voou. Quando dei por mim passava das duas da manhã.

O táxi chegou antes da hora prevista, com costuma acontecer de madrugada. Ainda tive tempo de engolir um café requentado no microondas. Àquela hora praticamente não há trânsito. Domingo, ainda por cima. A cidade estava a dormir, os transportes públicos mal tinham começado a circular. Chego à estação num ápice. Cedo demais até. Não se vê vivalma. O taciturno taxista tira a mala do porta-bagagens e deseja-me boa viagem, as únicas palavras que proferiu durante toda a corrida. 

Com o elevador que conduzia ao subterrâneo fora de serviço, tomei as escadas rolantes, tentando equilibrar a minha pesada mala, um saco, a mochila e o farnel. Avanço pelo túnel até ao cais 11, de onde parte o comboio para Colónia. Não há escadas rolantes, só elevador. Chamei-o e, esse, sim, estava a funcionar.

Foi aí que te vi. Estavas lá dentro, tombado no chão, encolhido como um feto abandonado, mochila escura aos pés, papel de prata, beata  de cigarro, enfim, os sinais de que tinhas procurado aquele lugar para a última dose do dia ou o golpe de misericórdia. Há quanto tempo teria sido? Não te vi o rosto com nitidez, mas compreendi que eras um homem novo, talvez na casa dos trinta. No estupor do chuto, estavas assustadoramente imóvel. Congelado. Ou morto.

Carreguei no botão. As portas do elevador abriram-se e – horror! – um cheiro nauseabundo feriu-me as narinas. Não se tratava de um mero odor a elevador atarefado. Era um odor pestilento a miséria e abandono, um cheiro intenso a mijo e a um suor de semanas. Revolveu-se-me o estômago. Se tivesse comido alguma coisa, teria vomitado as tripas. Hesitei em entrar, mas rapidamente percebi que não poderia acartar a mala escadas acima sem dar cabo das minhas lombares. Respirei fundo para ganhar coragem, entrei no elevador e premi o botão. As portas fecharam-se. Nunca aquela ascensão me pareceu tão longa. Lá em cima, no cais, as portas abrem-se do lado oposto. Percebi que, para sair, tinha de passar por cima de ti. Eu e a bagagem. Icei a mala com  esforço e consegui sair para o cais deserto sem te atingir. Que teria feito uma pessoa com um carrinho de bebé, um deficiente em cadeira de rodas, alguém sem força para levantar a bagagem do chão?

A porta fechou-se e eu fiquei a olhar-te através do vidro. Peguei no telemóvel e fotografei-te, eu, miserável voyeuse da desgraça alheia. Pensava enviar as fotografias aos serviços competentes da estação para que tomassem providências. Mas não o fiz. Porquê? Porque não telefonei para pedir que viessem ajudar-te, ressuscitar-te, constatar mais um óbito por overdose, sei lá??

Deixa-me contar-te o que se passou no dia anterior. Talvez assim compreendas melhor as sombras que levava na alma. Estava em Bonnevoie, seriam umas cinco da tarde e eu ia apanhar o autocarro para regressar a casa. Na paragem, sentada no chão, protegida da chuva miudinha pelo abrigo da JCDecaux, uma mulher com um olho enegrecido, mãos ensanguentadas e um fio de sangue a escorrer-lhe de uma  das narinas. Aflita, pergunto-lhe se quer ajuda e ela diz que não. Insisto, pergunto se não seria melhor chamar o 112. Zanga-se e começa a vociferar em luxemburguês, que não, que não quer. «Foi o meu homem que me bateu», diz a mulher ensanguentada, e aponta para a paragem de autocarro do lado oposto da estrada. Lá está o homem, sentado num murete. Ignoro-os, ligo para o 112, relato o que se passa, respondem que nada podem fazer sem o consentimento  da alegada vítima. «Onde está, minha senhora?», pergunta polidamente o meu interlocutor. Dou-lhe o nome e a localização exata da paragem. «Vou assinalar o caso à polícia, talvez algum agente possa passar por aí.»

Só se pode ajudar quem quer ser ajudado. A mulher da paragem do autocarro não queria ajuda e pôde pelo menos dizê-lo. Mas tu, anjo caído, nem sequer reagiste à minha presença naquele elevador. Não pude perguntar-te rigorosamente nada. No comboio, interrogo-me sobre quantos teriam já passado por cima de ti e fechado os olhos e tapado o nariz. O que se terá passado depois? Quem te terá encontrado e retirado do elevador? Como? Com compaixão ou ao pontapé?

Não telefonei a pedir que te viessem ajudar, porque entre a mulher ensanguentada de ontem e tu, o encarquilhado de hoje no chão do elevador, surgiram-me dúvidas. Afinal de contas, pedir ajuda para quem? Para ela, para ti ou para mim, que não suporto que me atrapalhem o sábado e o domingo desta maneira? E para quê? Para que alguma mão disciplinadora atue com celeridade fazendo-me o grande favor de vos impedir de viver ou morrer como quiserem, por mais contrário que isso possa ser à minha visão da ordem certa das coisas? Para um carro-vassoura vos varrer da minha vista e da de todos, deixando as nossas aburguesadas consciências em paz consigo próprias por terem feito a boa ação do dia?

Espero não passar por nenhuma situação semelhante nos tempos mais próximos. Fico tão triste. É que não sei. Não sei mesmo o que fazer. 

Eduarda de Macedo

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