De que está à procura ?

Colunistas

Contraditório 

Assistimos, desde há treze meses (e ninguém sabe por quantos mais), à agressão russa contra a Ucrânia. E, perante a destruição de grandes blocos de apartamentos, em Zaporíjia, Quieve, Carcóvia (nome português de Khárkiv), Kherson, Mariúpol, parecidos com os das periferias de tantas cidades europeias — como as nossas —, com os habitantes a acordarem em quartos esventrados e mostrando ao mundo, obscenamente, o colchão ensanguentado, a cozinha desmoronada, o carrinho do bebé de pernas para o ar, qual terramoto na Turquia ou na Síria; perante os milhões de civis impotentes que os bombardeamentos brutais fazem fugir para outros países, não só vizinhos, mas também tão longínquos como Portugal, largando para trás os haveres e os mortos, atualmente na ordem das centenas de milhares: sentimos que nada pode justificá-la. E tudo isto descrito pela Rússia como «operação militar especial», imbuída — aqui caem-me os queixos! — de um objetivo «nobre»… 

Depois, os russos avançam o velho argumento, em que poucos devem ainda acreditar, de que a Ucrânia é um Estado neonazi. Além da total subjetividade do argumento, é caso para nos perguntarmos por que é a Ucrânia neonazi. Porque em 2014 rejeitou o governo caninamente pró-russo de Yanukóvitch? Mas por que hão de os ucranianos aderir a uma união panrussa, se sentem que constituem uma nação de pleno direito? Ou será porque a Ucrânia tem reprimido o separatismo numa parte do seu território — a saber, o Donbass? Afinal de contas, tal como ajudou Bashar al-Assad a esmagar a rebelião síria, a Rússia também reprimiu sem dó nem piedade o separatismo numa zona — a saber, a Chechénia, que considera parte integrante do seu território. Ou será ainda porque, durante a 2.ª Guerra Mundial, houve na Ucrânia apoio considerável ao invasor nazi? Bom, os ucranianos acabaram por perceber que os nazis não estavam ali para os ajudar, mas o seu apoio inicial era compreensível, lembrados que estavam do indescritível pesadelo do Holodomor, um genocídio pela fome provocado pelo dirigente máximo da União Soviética, Stálin, entre 1932 e 1933. Confiscando e destruindo as colheitas, o objetivo foi pôr a Ucrânia de joelhos, a fim de castigar a sua relutância em relação à coletivização forçada nas zonas rurais. Só recentemente este acontecimento horrendo da história europeia começou a ser cabalmente revelado, porquanto há um pudor entre os próprios ucranianos, que guardam na memória coletiva episódios de canibalismo corriqueiro. Compreende-se que a cidadania «soviética» não lhes suscite saudades. 

Este o ponto de vista ucraniano. 

Ouçamos os russos: 

Por ocasião da conferência geopolítica realizada em Nova Deli entre 2 e 4 deste mês, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Serghêi Lavrov, em entrevista a um canal de televisão indiano, lembrou que, desde o seu início, em 2014, esta série de conferências pouco se tem questionado sobre a intervenção dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão; que, embora Emmanuel Macron e Olaf Scholz classifiquem a intervenção militar da Rússia na Ucrânia como a primeira violação dos Acordos de Helsínquia de 1975 sobre Segurança e Cooperação na Europa, a verdade é que, em 1999, a OTAN interveio na Sérvia, bombardeando-a, reduzindo Belgrado a escombros, com a aprovação do então senador norte-americano Joe Biden, o qual, um ano antes, preconizara o seu arrasamento; que uma coligação militar entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha destruiu o Iraque enquanto Estado, recorrendo a uma inacreditável mentira, a da existência de armas de destruição em massa (jamais se encontrou o menor vestígio delas, a mentira ficou impune até hoje e entretanto o Iraque passou por um dolorosíssimo processo de reconstituição, não sem primeiro nascer no seu território o terrorismo inaudito do chamado «Estado Islâmico», consequência indireta da intervenção militar externa); que inevitavelmente constitui duplicidade de pesos e medidas acreditar que os Estados Unidos têm o direito de considerar ameaça aos seus interesses nacionais qualquer lugar do planeta, como fizeram na antiga Jugoslávia, no Iraque, na Líbia, a muitos milhares de quilómetros do seu território (e de um dia para o outro), perante a passividade do resto do mundo e até com a aprovação do Ocidente, ao mesmo tempo que diabolizam a Rússia, que, ao longo de uma boa dezena de anos, avisou que o avanço da OTAN para leste instabilizava a situação política internacional, ameaçando a segurança das fronteiras russas, em territórios habitados por russos desde há gerações imemoriais, e não a milhares de quilómetros de distância. 

Sustenta a Rússia que, no Ocidente, não há acesso a fontes de informação isentas e que a opinião pública está deformada pela propaganda (de facto, a estação de televisão Russia Today foi proibida na União Europeia, num inadmissível ato de censura, ao passo que, diz-me um amigo meu, professor de Linguística na universidade de Níjni-Nóvgorod, a Rússia não nega aos seus cidadãos qualquer fonte de informação ocidental). Que Zelênsky ganhou as eleições na Ucrânia por maioria absoluta no pressuposto de assegurar a paz com a Rússia, mas, meses  mais tarde, mudou de posição. Que nunca se cumpriram os Acordos de Minsk de 2014 e 2015 (o nome deve-se a terem sido negociados na capital da Bielorrússia), aprovados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e em cujos termos se assegurariam a integridade e a independência da Ucrânia e, por meio de conversações, se definiria a pertença nacional do Donbass, sob administração ucraniana mas maioritariamente habitado por russos. Que os Acordos de Minsk se revelaram uma cortina de fumo para ir armando a Ucrânia, apesar de a Rússia exigir a neutralidade da vizinha, sem a presença da OTAN à sua porta. Que os Estados Unidos não tiveram escrúpulos em recorrer a terrorismo internacional (a sabotagem do gasoduto Nord Stream), a fim de impedir o fornecimento de gás russo à Alemanha. Que, sob a aparência de uma preocupação humanitária com os civis ucranianos, a América está em guerra aberta contra a Rússia. E que as cidades em ruínas cujas imagens impressionam os telespetadores ocidentais são do Donbass, onde os dirigentes da Ucrânia, sabendo-se alheios àquela terra e àquela gente, praticam uma política de terra queimada. 

Haja contraditório: 

É verdade que, desde 2014, a Ucrânia tem reprimido a ferro e fogo o separatismo pró-russo do Donbass, mas os escombros cujas imagens nos chegam abundantemente pela televisão não são apenas desse território: são também de Quieve, de Carcóvia, de Butcha (este nome, por ironia amaríssima, até lembra a palavra inglesa butcher, carniceiro), e estas cidades não se localizam propriamente na bacia inferior do Don. E seria justo que a Rússia desejasse uma Ucrânia neutral, sem o armamento da OTAN na sua fronteira meridional, mas há muito se tornou patente que os objetivos da Rússia em relação à Ucrânia ultrapassam a desmilitarização da vizinha: Pútin frisou que a Ucrânia não existia como Estado soberano até Lénin inventar a República desse nome; e lamentou outrossim o desmantelamento da antiga União Soviética, sendo pois presumível que, se não puder reconstituí-la, gostaria pelo menos de unificar a Eslávia Oriental (Rússia, Ucrânia e Bielorrússia) sob a tutela de Moscovo. 

Posto o que, preconizo para nós, cidadãos da Europa Ocidental, mais isenção, espírito crítico, ceticismo, distanciamento — porque, provavelmente, nenhum dos blocos, o americano por um lado, ou o russo por outro, tem autoridade para pregar moral ao mundo. 

Jorge Madeira Mendes

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA