Nascido em Lins, interior de São Paulo, Cervantes Souto Sobrinho exerceu, dentre outras atividades, o magistério e o jornalismo. Há quase duas décadas é produtor cultural e em 2011 fundou, na cidade de Campos do Jordão, no Vale do Paraíba, o Cineclube Araucária, que apesar de sua pouca idade, tem realizado extraordinário trabalho de difusão do que há de melhor na arte cinematográfica, estabelecendo um contraponto ao cinema meramente comercial que é a tônica na maior parte das salas do país e das emissoras de televisão.
Pode nos contar um pouco de sua trajetória profissional?
Meu primeiro trabalho remunerado foi em Lins (SP), onde nasci. Eu devia ter uns oito ou nove anos de idade. Meu pai era auxiliar de ensino na Escola Industrial Fernando Costa. A Escola Industrial foi uma inovação, criada pelo governo paulista, para a formação de mão de obra especializada para a indústria que se instalava no Brasil, durante a segunda guerra. Ocorre que houve um governador em São Paulo que adotou a prática de atrasar salário de funcionários, por vários meses seguidos. Em um final de ano, tendo recebido alguns salários que estavam em atraso, meu pai perguntou a mim e a meu irmão o que é nós queríamos ter como presente de Natal. Eu não pensei duas vezes. Eu queria uma bicicleta. Era o instrumento que eu precisava para trabalhar como entregador de marmitas. Naquela época havia muita gente que comia de marmita. As refeições eram entregues pelas pensões e alguns colegas meus de escola defendiam um dinheirinho fazendo esse tipo de trabalho. Assim eu tive o meu primeiro salário que era da ordem de sessenta e cinco cruzeiros por mês. Depois disso, já morando em Americana (SP), como eu era bom aluno de português, me candidatei à tarefa de revisor no jornal A Tribuna de Americana. Não só consegui o emprego, como também passei a escrever as matérias da coluna policial. Aí eu já devia ter uns 15 ou 16 anos. Quando terminei o colegial, fui contratado pelo Instituto de Educação Presidente Kennedy, também em Americana, como professor de matemática, no curso preparatório de admissão ao ginásio. Deixei a carreira de professor em 1967, quando fui aprovado em um concurso promovido pela prefeitura de São Bernardo do Campo, de onde saí em 1996. No entanto, nesse período consegui seis anos de licença sem remuneração, para trabalhar no Ministério de Relações Exteriores, também admitido por concurso, lotado na Embaixada do Brasil, em Paris, fazendo parte da equipe do serviço comercial, um serviço criado para promover as relações comerciais do Brasil com outros países, especialmente no tocante às exportações e captação de investimentos estrangeiros. Em 1997, com mais um sócio, criei a empresa PG Music Produções Culturais, em cuja direção estou até hoje. Muitos são os trabalhos de grande importância, realizados através da empresa, como, por exemplo, a produção do Festival de Inverno de Campos do Jordão, do Festival Amazonas Jazz, do Amazonas Film Festival, do Festival Música em Trancoso, do Projeto Adoniran, para a Fundação Memorial da América Latina e outros tantos.
E a paixão pelo cinema, quando se deu?
Posso dizer que a paixão pelo cinema começou na primeira década de minha vida, ainda em Lins, quando o dinheiro ganho era praticamente todo aplicado nos ingressos do Cine São Sebastião, a princípio nas matinês de domingo, acompanhando os seriados de Flash Gordon, Zorro, Tarzan e outros. Depois vieram os filmes das sessões noturnas, apropriados para maiores de 14 anos, já no Cine Cacique, em Americana. Mas, até aí, o cinema não passava de mero entretenimento, sem maiores pretensões. Até o momento em que me inscrevi em um curso de cinema, promovido pela União Estudantil de Americana, no qual assistimos e debatemos O Grande Momento, um filme brasileiro realizado por Roberto Santos, em 1957, que tem um elenco de primeira, encabeçado por Gianfrancesco Guarnieri, que esteva presente na projeção e nos debates. Decididamente, era aquele cinema que me interessava. Depois disso, procurei ver todos os filmes do chamado Cinema Novo e me tornei fã incondicional de Glauber e de Sganzerla, dois dos maiores revolucionários do nosso cinema.
Como surgiu a ideia de criar o Cineclube Araucária e qual a razão de sediá-lo em Campos do Jordão?
O Cineclube Araucária de Campos do Jordão começou a ser pensado em uma mesa do bar do Hotel Tropical, em Manaus. Eu já estava envolvido com a minha terceira edição no Amazonas Film Festival, um festival internacional de cinema que acontecia em plena Amazônia e que teve presenças de nomes importantíssimos como Claude Lelouch, Claudia Cardinale, Roman Polanski, Roberto Farias, Fernando Meirelles, Carla Camurati e tantos outros. Cada vez mais envolvido com o pessoal do cinema, diretores, atores, produtores, distribuidores e técnicos, era muito engraçado para todos eles o fato de eu me interessar tanto por cinema e escolher viver em uma cidade que não dispunha de sala de cinema. Foi quando a representante de uma grande distribuidora brasileira de filmes me disse: “Por que não criar um cineclube na cidade? Pode ser um bom caminho e você pode contar com o nosso apoio.”. Conversei com alguns amigos e decidimos pela criação do Cineclube Araucária, cuja Assembleia de Fundação aconteceu no dia 26 de março de 2011.
Que princípios centrais norteiam o Cineclube Araucária?
O Cineclube foi criado para suprir essa lacuna em Campos. Na minha cabeça, não fazia o menor sentido uma cidade que já foi cenário de importantes produções como Floradas na Serra, por exemplo, e que recebe o maior festival de música erudita da América Latina, não ter um espaço para a difusão da produção audiovisual. Então, num primeiro momento, o objetivo de se ter um cineclube na cidade foi exatamente esse: abrir espaço para que se as pessoas pudessem se reunir em torno de bons filmes e discutir sobre a contribuição do cinema para o processo de socialização, educação e desenvolvimento de novos hábitos e conceitos entre as pessoas, como encarar diferenças, por exemplo. Quase cinco anos após a sua criação, através de um trabalho intenso e ininterrupto, temos conseguido alguns resultados interessantes: primeiro a formação de um grupo de amigos cinéfilos que participa efetivamente do processo de crescimento intelectual na cidade, não apenas através do cinema, mas também de outras artes; depois e mais diretamente na contribuição para a formação individual das pessoas, através de algumas parcerias importantes, como é o caso das parcerias estabelecidas pelo Cineclube com a Secretaria Municipal de Cultura, com a Associação dos Amigos de Campos do Jordão, com a Oficina de Artes Rosina Pagan e com a Escola Estadual de Vila Albertina, que também tem proporcionado bons resultados como o projeto Cine Literatura e consiste na exibição de um filme cujo roteiro tenha sido adaptado de importante obra literária acompanhada de palestra proferida por personalidade do cenário literário brasileiro, seguida de debate. Também as Oficinas Profissionalizantes de Cinema e mostras temáticas de cinema.
Os cineclubes têm ocupado o espaço que merecem?
Os cineclubes têm uma função muito importante no processo de difusão da produção audiovisual e especialmente na formação de novos hábitos de cidadania nos locais onde se instalam. Se até mesmo em alguns bairros de grandes metrópoles, como São Paulo, a criação e o funcionamento de um cineclube contribuem enormemente para a elevação da autoestima dos seus frequentadores, imagine em uma cidade de médio porte, como é o caso de muitas cidades brasileiras, em que os antigos cinemas foram se transformando em estacionamento, supermercado ou igreja evangélica. Não fosse a existência dos cineclubes, a população da grande maioria das cidades brasileiras não teria outro meio para conhecer o que se faz no mundo em termos de cinema, a não ser pelo abastecimento precário e muito desqualificado que nos chega através das emissoras de televisão. Em São Paulo, pelo menos, ainda temos a TV Cultura que, de algum modo, apresenta uma programação com alguma qualidade, mas fora isso, melhor nem comentar. É lixo sobre lixo, como se as nossas cabeças não passassem de micros aterros sanitários. Lamentável!
Os princípios comerciais continuam sendo a tônica na distribuição de filmes pelas salas de cinema do país. Algum antídoto para isso?
As salas comerciais sobrevivem dessa forma. Oferecem aquilo que o grande público está disposto a consumir. Infelizmente, não temos tradição de frequentar cinema de arte. E, por incrível que pareça, é justamente o público com menos formação acadêmica que mais aprecia uma obra de arte no cinema. O nosso problema está na educação disponibilizada pelo sistema de ensino nacional. Não tenho dúvida disso. E não é só no que diz respeito às artes que o resultado de uma péssima política educacional se faz sentir. Os cineclubes, de algum modo, suprem esse buraco na nossa formação intelectual. A única solução possível é uma revolução na educação. Mas isso não vai acontecer, enquanto estivermos na mão de políticos que vivem da ignorância do povo. Tenho certeza de que não vou viver para ver essa transformação, que espero aconteça um dia. Estamos fazendo a nossa parte, mas ainda é apenas uma gota no oceano de mediocridade que se instalou neste país.
O que ainda falta ao cinema nacional? Como explicar, por exemplo, que a Argentina, com baixos custos, produz filmes de alta qualidade, com larga divulgação mundial?
Acho que no Brasil, mesmo as boas cabeças, acabam dependentes de uma droga chamada governo. As leis de incentivo seriam uma boa forma de resolver o problema da falta de investimentos privados ou de auto-sustentação para as produções artísticas, seja no cinema, teatro, música, artes plásticas ou outras manifestações quaisquer ditas culturais. O problema é que acabam servindo a determinados interesses de grandes institutos, instituições ou até mesmo de empresas estatais ou não. Vejo filmes de qualidade técnica indiscutível, com argumentos muito interessantes, mas que acabam recebendo um tratamento final que mais parece propaganda de um determinado grupo ou de uma situação que não se sustenta mais pelas próprias pernas. Não sei exatamente como as coisas acontecem na Argentina, mas só o fato de conseguirem excelentes resultados com orçamentos muito menores do que têm as nossas produções, já é um sintoma muito claro de que os nossos mecanismos não andam tão sadios assim e que muitas coisas precisam ser revistas. Concorda?
Nossos festivais de cinema têm cumprido seu papel? Campos do Jordão, a partir da bem-sucedida experiência do Cineclube Araucária, não poderia sediar um deles?
De certo modo, os festivais de cinema fazem a sua parte, mas o problema da qualidade das nossas produções não é dos festivais. Tenho consciência de que os curadores dos festivais fazem as melhores escolhas, tanto do ponto de vista técnico quanto artístico, mas só podem eleger o que lhes é disponibilizado pelos distribuidores, produtores, diretores e agentes de filmes. Quanto a Campos do Jordão sediar um festival de cinema, por mais de uma vez presenciei tentativas frustradas e frustrantes nesse sentido. As razões acabam sempre desembocando no modo como esses empreendimentos são administrados e os interesses que existem por trás de cada um deles. Uma coisa, no entanto, é certa: se você não atrai a classe cinematográfica ampla e irrestritamente para o seu evento, não adianta esperar pelo sucesso.
Que visão tem das leis de incentivo à cultura? Não estarão as leis de mercado a desvirtuá-las, ao permitirem que mega-produtores da indústria de entretenimento delas se beneficiem?
Acho que já falamos disso neste mesmo bate papo. Mas, apenas complementando, eu não tenho dúvida de que os grandes beneficiados com as atuais leis de incentivo não são nem as produções, nem o público, mas os grandes empreendedores que ficam com a maior fatia do bolo para os próprios institutos, centros culturais e estatais.
Novos projetos para o Cineclube Araucária? A batalha de mantê-lo e fazê-lo crescer tem valido a pena?
Tem valido a pena, sim. Quando você vê uma senhorinha muito humilde se dirigir a você, na saída de uma sessão que exibiu um filme totalmente não comercial, e agradecer, por você ter dado, a ela e a sua filha, a oportunidade de refletir sobre problemas tão sérios, isso não tem preço. É o que nos encoraja a continuar, sem medir esforços, para que cada vez mais e mais pessoas possam compartilhar das oportunidades que nos são oferecidas por esse mundo infinitamente grande e criativo que é o cinema. Estou plenamente de acordo com a afirmativa de uma escritora, professora de cinema, chamada Sílvia Marques, publicada em um de seus artigos na revista Obvious, segundo a qual “um bom filme pode efetivamente mudar as nossas vidas”.
Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.