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André Sampaio: as matriarcas afro-brasileiras

Doutorando em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em História da África pela Universidade Cândido Mendes, André Sampaio publicou, no final de 2020, o livro Matriarcas Mulheres de Raça e de Cor, no qual conta a história de três mulheres de origem afro-brasileira: Mãe Beata de Yemonjá, Conceição Evaristo e Fabiana Cozza.

O que representa a influência africana para o Brasil?

Acredito que os alicerces culturais do nosso país foram construídos através de elementos culturais diversos. A influência africana é uma dessas contribuições para o que entendemos como identidade cultural brasileira.

Quando se deu seu primeiro contato com a arte e a cultura de matriz africana?

Muito cedo, aos três anos de idade, fui levado a um terreiro de umbanda pelos meus pais. Desde lá, nunca me afastei desse universo religioso e cultural.

O que se perdeu, diante do fato da arte e cultura africanas terem ficado, ao longo dos séculos, registradas tão somente na tradição oral?

Na verdade, não houve perda, mas sim uma proteção, onde a memória não podia ser encarcerada. Devido a isso, temos hoje disponível um material gigantesco que pode ser conhecido e estudado. A tradição oral foi a protetora desses elementos culturais, pois a parte mais significativa sempre esteve protegida pela memória e vem sendo passada de geração em geração.

O que o levou a mergulhar no universo da arte e cultura afro-brasileira?

Paixão, devoção e fé. Além de um desejo gigantesco de homenagear esse povo que tanto contribuiu para a formação do nosso país.

Em seu livro Matriarcas Mulheres de Raça e de Cor, recém-lançado, você homenageia três mulheres negras: Mãe Beata de Yemonjá, Conceição Evaristo e Fabiana Cozza. Como foi a escolha desses três nomes para representar a mulher negra brasileira?

Quando eu estava no segundo semestre de minha graduação, em 2003, decidi trazer para a monografia de conclusão de curso um pouco de minha religião. Comecei a buscar e perguntei a uma professora da época, Mailsa Passos, de Cultura Brasileira, qual obra eu poderia trabalhar. Ela me respondeu: o livro encontrará você. Não procure! E assim foi. Um dia, num sebo, vi na prateleira de obras sobre religiões afro-brasileiras uma capa que me chamou a atenção, por ser parecida com papel de pão. Peguei o livro e ali estava Caroço de Dendê, de Mãe Beata de Yemonjá. Ao abri-lo, me deparei com inúmeros contos que traziam os mitos iorubás. Pensei: achei o tema da minha monografia. Tive dificuldade ao trazê-lo  para o meio acadêmico, mas não esmoreci e fui até o final. Passei a conviver com a Mãe Beata em seu terreiro, para não deixar passar nenhuma riqueza de sua personalidade. Escrevi oitenta páginas e recebi indicação para publicação da banca inteira. Foi incrível. Conceição Evaristo, conheci com a minha orientadora da graduação, Luciane Nunes, que me orientou no processo de escrita da monografia sobre Mãe Beata. Conceição era amiga dela e ela fez questão de me apresentá-la. Na época, Conceição Evaristo não era tão conhecida. Comecei a namorar a obra dela e resolvi falar sobre ela no mestrado. Quando cheguei à Universidade Federal Fluminense, quem estava lá estudando também? Conceição Evaristo. Eu, no mestrado, ela, no doutorado. Tivemos a mesma orientadora, Laura Padilha, especialista em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Minha dissertação foi sobre a Conceição e Mia Couto, autor moçambicano. E no meio dessa trajetória toda eu já ouvia Fabiana Cozza. A conheci num domingo pela manhã, na TV Cultura. Sempre amei Clara Nunes, era ninado ao som de Ijexá, canção interpretada por ela. Naquela manhã de domingo, me deparei com uma voz incrível, cantando Ijexá também. Me apaixonei na hora por Fabiana Cozza e fui até o Orkut ver se conseguia o contato dela. Ela aceitou o meu convite e passei a segui-la como fã.  Quando cheguei a São Paulo e me tornei sócio do Grupo Prismma, quem estava na lista de projetos culturais da empresa? Sim, Fabiana Cozza.   Acredito que foi o destino e os orixás que colocaram em minha vida essas mulheres brilhantes!

Que papel teve Mãe Beata de Yemonjá na religião e na literatura afro-brasileira?

Mãe Beata de Yemonjá era uma exemplar mãe de santo baiana, que vivia no estado do Rio de Janeiro. A trajetória de vida, de literata e de religiosa, convergia em sua vida cotidiana. Mãe Beata era Mãe Beata o tempo todo. Dona de um coração de mãe, estava sempre pronta para receber novos filhos. Eu mesmo fui recebido em sua casa como um filho. E ela era assim com todos. Mãe Beata foi e continua sendo um exemplo de resistência cultural, social e de gênero. Seu passar por esse mundo mostrou que somos todos iguais perante os Orixás e perante a própria vida. E a sua literatura é a prova concreta que textos orais ou escritos não precisam de rebuscamento para se tornar literatura. Mãe Beata era uma contadora de histórias que pegava a mão do leitor ou ouvinte e o levava ao universo da mais pura literatura popular. Encantava a todos com a sua ternura e respeito ao próximo. Mãe Beata de Yemonjá é exemplo a ser seguido.

O que representa a professora e escritora Conceição Evaristo, cuja obra apenas recentemente tem merecido destaque em nossa literatura?

Conceição Evaristo é uma contadora de histórias sem igual na atualidade. Sua voz mansa, seu jeito carinhoso de contar histórias e o respeito que ela tem com a palavra a fazem não só uma escritora de qualidade indiscutível, mas também uma autora que representa as milhares de mulheres que encontramos todos os dias. Seu olhar é tão diferenciado que até mesmo o mais frio dos homens se sente tocado ao ouvi-la. Eu conheci Conceição em 2002 e tive a honra de estudar com ela na Universidade Federal Fluminense, ela fazendo doutorado e eu mestrado. Nesse período, convivi mais com ela e acabei percebendo que sua obra é apenas, no bom sentido, o olhar de uma matriarca que faz da escrita uma forma mais doce e mais justa de viver a vida. Minha dissertação de mestrado foi sobre ela e sobre Mia Couto e dessa mistura literária aprendi que a escrita mais simples toca mais o coração de quem a lê. Não pela simplicidade em si, mas por estar ligada diretamente aos sonhos de cada um. Conceição Evaristo faz esse percurso com o leitor e mesmo, por algumas vezes, sendo um percurso doído, o que fica é o incessante desejo de uma transformação social, onde a igualdade de gênero, de cor, de raça, de orientação sexual seriam apenas detalhes que nos fariam mais interessantes e jamais inferiores ao padrão.

Qual a importância de Fabiana Cozza em nossa música e na discussão das questões raciais no Brasil?

Fabiana Cozza atualiza o que há de mais brasileiro entre nós. Seu talento é tão grande que transcende as barreiras e obstáculos impostos por essa sociedade onde a diferença se tornou novamente alvo para ataques e preconceitos. Fabiana tem o dom da palavra, seja cantada ou falada, sua voz ecoa e marca quem a ouve. Dona de um discurso pautado na sabedoria dos terreiros de candomblé e na sapiência acadêmica, a artista faz da sua carreira um púlpito onde a intolerância não encontra espaço.

Quais antídotos considera essenciais na luta antirracista?

Educação, estudo e menos vitimismo.

No campo das pesquisas acadêmicas, o que ainda falta para aprofundarmos as questões relativas ao negro brasileiro?

Acredito que uma política não panfletária seria o ideal. Enquanto houver uma separação daquilo que é do branco ou do negro (agora do preto) não haverá um espaço maior para os estudos relacionados à cultura afro-brasileira. Precisamos estudar a cultura brasileira, fazendo isso, tocaremos nas múltiplas culturas que formam o nosso país.

Novos projetos para 2021?

Sim, quero voltar à academia para concluir o doutorado em Letras e começar novo doutorado, em Ciências Sociais. Não consigo viver sem estudar, amo ser aluno.

 

Sobre o autor da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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