O animal entra na arena, o público levanta-se, aplaude, e grita por sangue…
Podia ser uma cena do ano 400, a decorrer no Coliseu de Roma, mas, infelizmente, passa-se em pleno séc. XXI, numa arena que pode estar em Portugal, em Espanha, no México…
Estamos no século das transformações tecnológicas, políticas, económicas, biológicas, sociais… Então e a ética? Como podemos, ainda, permitir barbaridades de tempos perdidos?
Durante os Jogos Inaugurais do Coliseu de Roma, que duraram 100 dias, estima-se que morreram centenas de gladiadores e milhares de animais, principalmente leões trazidos de África.
Felizmente o Imperador Flávio terminou com aquela carnificina.
E quem vai acabar com aquela que continua? Será o touro um animal ‘inferior’, ou ‘sobrenatural’, capaz de suportar aquilo a que o sujeitam?
Tenho evitado este tema, confesso que me perturba mas, ao ler que um Touro morreu com a coluna partida durante a largada, nas recentes Festas da Moita, não consegui evitar este desabafo. Nas redes sociais as versões são contraditórias. Testemunhas dizem que o animal embateu num obstáculo e partiu a coluna, estando ‘vários minutos numa perfeita agonia’. O blog da Festa Brava desmente, dizendo que o touro teve morte ‘quase imediata’. Relata-se também a morte de um segundo animal, desta feita ‘morto à paulada’ após ter colhido uma pessoa. Outra noticia também desmentida pela Festa Brava.
Pena que o que se gasta nestas festas ‘tradicionais e culturais’ não seja encaminhado para algo realmente construtivo e cultural, como bibliotecas, escolas, quintas pedagógicas, algo que faça bem aos seres vivos e não que os mate…
Será que estes dirigentes não são pais? Será que já pensaram nos exemplos que estão a dar aos seus filhos? Então a violência para com os animais é seletiva? Não faz mal se for catalogada como ‘tradição’ e se nos trouxer lucro e turismo? Se fizer parte de uma ‘Festa’?!
O chamado touro de lide descende de um animal primitivo que habitava, em liberdade, os bosques da Europa, África e Ásia. O touro selvagem começou por ser usado em exercícios militares, mas acabou por perder a sua importância quando surgiu a pólvora e a cavalaria deixou de ser fundamental no campo de batalha.
Os combates sangrentos tornaram-se assim uma ‘diversão’ e começaram a ser proibidos pela Igreja católica. Portugal cumpriu a proibição, considerando que : “Os combates de touros sempre foram considerados como um divertimento impróprio da Nação humana civilizada”. Mas Espanha ignorou as bulas Papais. Assim, e mais tarde, as corridas de touros voltaram a ser exportadas deste país para Portugal, sendo definitivamente autorizadas, por serem uma fonte de receitas para a Casa Pia e para as Misericórdias. Mas o fim ‘beneficente’ inicial foi rapidamente transformado num fim lucrativo pelos influentes grupos tauromáquicos.
Felizmente a maioria dos países abandonou este tipo de espectáculo sangrento por volta do séc. XVI, considerando que se trata de ‘eventos cruéis e impróprios de nações civilizadas’. As touradas são proibidas em diversas nações europeias como a Inglaterra, Dinamarca, Itália e Alemanha. Infelizmente por aqui a ‘tradição’ impede-nos de ser ‘civilizados’…
‘No início, a única defesa do toureiro é o capote, capa vermelha de forro amarelo. Incapaz de distinguir cores, o bicho é atraído pelo movimento do pano – o vermelho só serve para disfarçar as manchas de sangue.’
Não basta dizer que se não existissem touradas este touro de lide já tinha encarado a extinção. A tortura não pode ser o motivo para a sua sobrevivência.
Não basta defender que este animal não sente dor. Mesmo que isso fosse verdade, não motiva a sua humilhação. E não é, dizem muitos veterinários:
Todos os animais são dotados de sistema nervoso e, como tal, acabam por ter consciência do que se passa à sua volta, seja agradável, perigoso, ou mesmo agressivo. Maior ou menor, mas todos têm. Se todos os mamíferos são semelhantes, porque não há-de o touro sentir medo, terror, stress, dor, tal como nós? Imagine-se colocado na pele daquele animal:
O touro é retirado da campina, de forma violenta, e transportado até ao recinto, num aperto e em verdadeira claustrofobia. É depois fustigado de forma a perder o ânimo e a força física antes de ser toureado. Entra então para uma arena, onde o espera a provocação e a tortura da lide, que o fere violentamente com bandarilhas. Mesmo a retirada destas, que pouca gente vê, causa muito sofrimento, podendo rasgar ainda mais a sua carne. Gasto e alanceado, volta a ser colocado no transporte, doente, em acidose metabólica, em sofrimento, desejando que a morte o liberte de tanto tormento.
Tentando justificar o injustificável, aparecem estudos defendendo que o touro liberta muitas endorfinas na arena e que isso reduz a sua dor. Também a mulher em trabalho de parto, e alguém é capaz de lhe dizer que não sente dor? E dizer que sente ‘menos’ dor é comparar ao quê? Que em vez de sentir uma bandarilha sente um prego? Que sente menos vértebras a quebrar, ou menos músculos a romper?
E em relação ao cavalo? Qual é a desculpa para este pobre animal ser arrastado para este calvário?
Mais uma vez, como ser vivo, ele também experimenta sensações como o medo, a angústia, a claustrofobia de querer fugir e não ser capaz. Numa situação normal, seria isso que faria se visse um touro a investir na sua direcção. Mas ali, na arena, não. É dominado e obrigado pelo cavaleiro a enfrentar o perigo. Sujeito a treinos que o subjugam, ferros que o ferem na mandibula, esporas que o cravam na carne.
Será verdade que se chega até ao ponto de lhes cortar as cordas vocais para a assistência não ouvir os seus gemidos?
Seja como for, também eles se sujeitam a morrer ali, corneados.
E dizem os cavaleiros que amam os seus cavalos…
Quanto tempo teremos ainda de esperar para que a ética chegue a estas arenas?
O respeito pela vida daqueles animais.
Governantes, políticos, alguém por aí com coragem de ser um ‘Imperador Flávio’?
Ou vamos, de todo, perder a pouca ética que ainda temos, voltar ao tempo dos bárbaros e gritar na arena: “Salve, César! Aqueles que vão morrer te saúdam!”?!