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O homem que foi hoje a enterrar

Há cerca de vinte meses, publiquei no bomdia.eu a crónica intitulada «Na morte de José Mário Branco», na qual declarei que, se é sempre ingrato falar negativamente de um falecido, ainda mais ingrato o é quando esse falecido está aureolado da intocável respeitabilidade com que uma certa esquerda reveste os seus «santos».

No que respeita a Otelo Saraiva de Carvalho, falecido no domingo, importa desde já assinalar que terá sido um dos estrategas do golpe militar de 25 de abril de 1974, mas provavelmente não o mais importante — e seguramente não o único. Outros, como Salgueiro Maia (o homem no terreno), Melo Antunes (um dos ideólogos) e Ramalho Eanes (futuro presidente da República entre 1976 e 1986), tiveram papéis não menos decisivos.

De qualquer modo, Otelo estava muito longe de ser aquilo a que se chamaria um democrata.

Entre as forças de esquerda que se manifestavam ruidosamente após o 25 de Abril, o Partido Comunista Português, que muitos classificavam como o mais estalinista do Ocidente e que obedecia com fidelidade canina e incondicional às instruções da União Soviética, tinha como objetivo controlar o poder político em Portugal durante a chamada «descolonização». Logo que os territórios sob administração portuguesa em África estivessem independentes sob o comando das forças políticas pró-soviéticas (PAIGC na Guiné e em Cabo Verde, MLSTP em São Tomé e Príncipe, MPLA em Angola e Frelimo em Moçambique), o PCP deveria renunciar ao controlo da vida política portuguesa, porquanto a União Soviética não estava em condições de sustentar, política e/ou economicamente, um novo satélite, uma segunda Cuba, desta vez em plena Europa ocidental. No contexto da Guerra Fria, Portugal, membro fundador da OTAN, era tacitamente entendido (inclusive pelo Pacto de Varsóvia) como pertencente ao bloco ocidental.

Durante o PREC (jocosa abreviatura de processo revolucionário em curso, um período de cerca de um ano e meio a seguir ao 25 de Abril), Otelo dirigiu o COPCON (Comando Operacional do Continente). Nessa qualidade, distribuía ordens de prisão em branco, que os seus subordinados preenchiam conforme a sua livre vontade a fim de deterem todos os que considerassem «reacionários» e «fascistas». Numerosos cidadãos respeitáveis e dignos eram presos sem culpa formada. A arbitrariedade e a discricionariedade em pleno. Aliás, Otelo proclamava que um dos erros dos revolucionários fora não terem oportunamente fuzilado na praça de touros do Campo Pequeno todos os contrarrevolucionários (leia-se: todos os que pudessem opor-se à sua visão para o país).

Dadas, pois, as condicionantes da geopolítica internacional (e dado que as cinco ex-colónias portuguesas de África estavam já independentes sob regimes favoráveis à URSS…), um novo golpe de Estado militar pôs fim ao PREC em 25 de novembro de 1975. Realizaram-se eleições legislativas, das quais saiu um governo que já não incluía o PCP, e Portugal entrou progressivamente na via «democrática» (pelo menos, no sentido «ocidental» deste termo). O PCP aceitava a nova situação e conformava-se a não passar de um partido como todos os outros no espetro político português.

Mas as tendências ultraesquerdistas emergentes do 25 de Abril, entre as quais Otelo e os seus aliados, não se resignavam. O desfecho final da revolução era-lhes intolerável: Otelo lamentava-o, porquanto, como dizia, as forças de esquerda tinham, por um triz, estado à beira de concretizar uma revolução profunda, que transformaria Portugal numa misturada de Cuba, Argélia, Albânia, Moçambique (do seu idolatrado Samora Machel), Coreia do Norte talvez mesmo…

Por conseguinte, apoiou, se é que não criou, o movimento de guerrilha urbana chamado FP-25 (Forças Populares 25 de Abril), comparável às Brigate Rosse italianas, à francesa Action Directe, ao grupo alemão Baader-Meinhof e aos GRAPO espanhóis (todos autodenominadamente de esquerda). Durante a década de 1980, as FP-25 cometeram atentados à bomba (contra alegados fascistas, latifundiários ou capitalistas) e execuções à mão armada (contra membros das forças policiais e os «arrependidos» da organização). Uma dos seus atentados à bomba ocorreu numa modesta exploração agrícola de São Manços (distrito de Évora), em 1984, em resultado do qual morreram um bebé de quatro meses e a sua septuagenária avó. Otelo defendeu especificamente este atentado.

Os agentes da Polícia Judiciária Rui Dias e João Paulo Ventura declararam que, atendendo à dimensão demográfica de Portugal, as FP-25 foram mais mortíferas do que os supracitados GRAPO ou Brigate Rosse (https://expresso.pt/politica/2021-07-25-FP-25-foram-mais-mortiferas-do-que-as-Brigadas-Vermelhas-ou-os-Grapo-95860827).

Enfim, as FP-25 acabaram por ser desmanteladas, com detenção, julgamento e condenação a penas variáveis de todos os seus operacionais ainda à solta. Otelo negou sistematicamente qualquer papel na organização, menos ainda como dirigente, mas a sua culpa ficou provada. Demagogicamente, personagens de esquerda, quer em Portugal quer a nível mundial, incluindo alguns que teriam sido alvos das depurações revolucionárias, apelavam à libertação de Otelo. François Mitterrand, por exemplo, disse: «Portugueses, libertai Otelo, ele merece.» Se tivesse apelado à libertação a pretexto de inocência, já seria discutível, mas apelar à libertação porque «ele tinha libertado o país do fascismo» era inadmissível. Como se o facto de ter sido, durante um dia, um dos dirigentes do golpe militar lhe desse carta branca para tudo fazer impunemente, inclusive terrorismo armado.

Se Otelo se empenhara em livrar Portugal da ditadura do «Estado Novo» para em seguida instaurar uma outra, pretensamente «progressista» mas que se traduziria pela tal amálgama marxista cubano-argelino-albano-coreano-moçambicana, mais valeria ter deixado evoluir a primeira, que, perante o contexto geopolítico, acabaria por abrir o país aos modelos ocidentais. É também o que se conclui de declarações proferidas em 2006 por José Saramago, Prémio Nobel da Literatura em 1998 mas sobretudo militante (sublinho: militante, que não apenas simpatizante) do Partido Comunista Português: se a revolução de 1974 não tivesse acontecido, estaríamos como hoje, porque «não restou nada, rigorosamente nada» do 25 de Abril (https://www.cmjornal.pt/politica/detalhe/nao-ficou-nada-do-25-de-abril). Obviamente, Saramago deplorava que assim tivesse sido, mas, no limite, poderíamos apoiar-nos nestas declarações de um comunista para supor que o 25 de Abril apenas encurtou um desfecho inevitável a prazo mais ou menos longo.

Note-se, ademais, que o PCP nunca se mostrou solidário para com Otelo, pois via a extrema-esquerda como demasiado independente e embaraçosa, senão incómoda. Disse-se até que o juiz mais empenhado no processo judicial e na prisão de Otelo era afeto ao Partido Comunista.

Por fim, praticamente só os «arrependidos» das extintas FP-25 purgaram a sério os seus crimes: alguns pagaram com a vida a «traição» à causa, outros cumpriram penas de prisão. Os operacionais, que durante as sessões do tribunal erguiam o punho com ar desafiador e arrogante, acabaram amnistiados pelo socialista Mário Soares, presidente da República entre 1986 e 1996. Soares fora o mais ferrenho dos que se tinham oposto à instauração de uma ditadura marxista em Portugal durante o mencionado PREC. Combatera, não só as tentativas de tomada do poder pelos comunistas, mas também as dos ultraesquerdistas. Sabia bem que, se essas tentativas tivessem tido êxito, a sua cabeça teria sido uma das primeiras a rolar. Mas já atingira o cume das suas ambições políticas a nível nacional — presidente da República com ares de reizinho bonacheirão. O seu narcisismo estava saciado. Ao amnistiar estes terroristas, com destaque para Otelo, Soares obtinha a vassalagem da extrema-esquerda e passava por magnânimo.

Há dois dias, durante um debate televisivo a propósito do falecimento de Otelo Saraiva de Carvalho, uma jornalista pretensamente progressista assinalou que também existira terrorismo de direita na época perturbada dos primeiros anos da revolução, mas um outro interveniente recordou-lhe, curialmente, que nenhum — nenhum! — dos autores desses atentados terroristas de direita havia recebido condecorações (os capturados pelas forças da ordem tinham mesmo cumprido penas de prisão), ao passo que Otelo fora agraciado ao mais alto nível do Estado — mais propriamente, o presidente da República, Ramalho Eanes, apôs-lhe a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade em 1983 (ironicamente, no dia 25 de novembro), dado o seu papel no derrube da ditadura e na instauração da democracia (?!). Acresce que, graças à amnistia, o tempo que passou na prisão foi meramente simbólico. É certo que recebeu a condecoração antes de integrar o grupo terrorista FP-25, mas num momento em que as suas arbitrariedades à cabeça do COPCON eram já conhecidas… e a condecoração nunca lhe foi retirada.

Escusado será dizer que as reivindicações de justiça das famílias das vítimas mortais do seu movimento terrorista foram completamente frustradas. O mentor de quem os tinha estropiado ou que tinha matado os seus familiares era condecorado pelo supremo magistrado da nação e tratado como grande e encantador herói, culpado apenas de travessuras perdoáveis…

Porém, o irresponsável manifestou-se uma última vez há poucos anos: quando da crise financeira de 2008-2013, Portugal teve necessidade de assistência, porque as instituições de crédito privadas (ou seja, os grandes bancos) já não ousavam emprestar dinheiro a um país incapaz de o pagar. Constituiu-se então um triunvirato, formado pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional (a chamada troika), com vista a disponibilizar fundos a taxas de juro acessíveis aos países mais duramente afetados pela crise, em especial a Grécia, mas também a Irlanda e Portugal. Contudo, a troika impôs rigorosas medidas de austeridade, a fim de garantir que os países «assistidos» fossem capazes de reembolsar esses empréstimos. Um governo de esquerda (Partido Socialista) colocara irresponsavelmente Portugal nesta situação; agora, uma coligação de centro-direita (Partido Social-Democrata e CDS-Partido Popular) ia resgatar o país da crise. Naturalmente, a sociedade portuguesa sofreu muitíssimo com a austeridade, em grau variável consoante os setores sociais. A esquerda assanhava-se, mas tinha a memória curta, pois em 1983 uma anterior crise financeira levara o primeiro-ministro da altura, precisamente Mário Soares, a apelar ao Fundo Monetário Internacional (Portugal só três anos mais tarde aderiria à Comunidade Europeia), produzindo-se então um cenário idêntico (lembro-me muito bem dessa primeira austeridade, mas os socialistas pareciam tê-la esquecido em 2011). Chego assim a um ponto que pretendia sublinhar: aí por 2012, em plena austeridade sob um governo de caráter conservador, Otelo convidou as forças armadas a, literalmente, derrubarem o governo, «como se fizera contra o fascismo em 1974». Imagina-se um golpe de Estado militar num país membro da União Europeia e da Zona Euro, um país no qual se supõe que a democracia está consolidada?! Mesmo os correligionários dele se calaram, embaraçados.

Foi este desassisado (um desassisado sorridente e simpático mas que matava e incitava a matar) que faleceu anteontem. Evidentemente, é um dos deuses do panteão da esquerda. E isso, num país como Portugal — onde, desde há décadas, o politicamente correto impõe as suas balizas e dita o que e como devemos pensar —, tornava-o sagrado e intocável.

Na morte de Otelo Saraiva de Carvalho, a única atitude não hipócrita seria o endereçamento de condolências às famílias enlutadas. Os encómios são pura e inadmissível demagogia.

Jorge Madeira Mendes

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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