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A democracia em sobressalto

O país assistiu recentemente a um espetáculo obsessivo nas televisões, que exploraram até à náusea a hipótese da dissolução, ou não, da Assembleia da República por causa do caso protagonizado pelo ministro das Infraestruturas e pelo confronto daí resultante entre o Presidente e o Primeiro-Ministro, como se antecipar eleições fosse uma coisa de somenos, sem qualquer importância na credibilidade do país, no desenvolvimento e na nossa imagem externa, como se a estabilidade fosse prescindível. É a imprensa, sempre a imprensa, que vai marcando o ritmo dos dias.

O resto do país não existe. Os outros temas, nacionais ou internacionais, são acessórios. Não se fala nem do Minho nem do Alentejo, do Algarve ou dos Açores, nem de outros assuntos relevantes. Pouco interessa que o país esteja numa situação de quase pleno emprego e a economia em aceleração, que haja muitos investimentos em perspetiva. Que tenhamos ultrapassado o espectro da crise energética e que a inflação vá dando sinais de retração. Que tenhamos de aplicar sem demoras os fundos da União Europeia, para bem de todos. O que interessa é explorar casos de rutura e de conflito, os dramas do dia-a-dia, manter a pressão e criar instabilidade, só para atingir e fragilizar o Governo, num ímpeto coletivo irresponsável, transformando em essencial aquilo que é acessório.

A política e a comunicação social criam assim uma bolha bem diferente da realidade do povo, que tem de enfrentar as dificuldades do quotidiano, que precisa de estabilidade, de ter orgulho no país e anseia por uma vida melhor, que precisa de ver os seus problemas resolvidos. A imprensa e o batalhão de comentadores, quantas vezes comprometidos, lá vão engrossando a corrente do exercício coletivo de autoflagelação, desconstruindo realidades complexas até estar tudo por terra.

E no meio desta voracidade político-mediática, a tranquilidade vai-se esvaindo, a dúvida vai-se instalando, como se a arena fosse a dos vídeo-jogos, que só mostram confronto e eliminação. Ao mesmo tempo, percebe-se que as regras, mesmo as da convivência democrática, perdem a força que sempre deviam ter, tal como acontece nas redes sociais, mesmo onde deveriam ser um pilar na estrutura do Estado, como no Parlamento, nos gabinetes de ministros ou nos setores do Estado. 

Vai-se criando um ambiente de confronto, de manipulação, de casos, de insistência no drama até que finalmente ele aconteça. Cria-se um ambiente irrespirável só para poder dizer que falta o ar. E, no meio disto tudo, emerge a falta de maturidade em lugares que deveriam estar blindados, surge uma linguagem inapropriada que despudoradamente ganha dimensão pública, que, infelizmente, se tem tornado cada vez mais frequente desde que a nova direita e a extrema-direita entraram no Parlamento, degradando a democracia a cada dia que passa, com os seus insultos e comportamentos grosseiros, como aconteceu na celebração do 25 de Abril perante o Presidente do Brasil, gerando situações que nos envergonham a todos. 

Escorre tudo para a imprensa, em justicialismos e exibicionismos inconsequentes. Perdem-se as regras, perde-se o sentido da decência, perde-se o recato, perde-se o respeito. Perde a democracia. Ganha a desordem.

Por isso, e independentemente das falhas que possam ser imputáveis ao Governo, é preciso fazer uma grande reflexão sobre o que está a acontecer com a nossa sociedade, que entrou numa voracidade auto-destrutiva que vai corroendo o nosso orgulho coletivo. Qual é a responsabilidade dos partidos, dos agentes políticos, da imprensa, das redes sociais, da sociedade? Afinal onde cabe aqui o sentido do bem comum, a preocupação com a estabilidade e o prestígio das instituições? Estará alguém a pensar no país, nas pessoas, na democracia? O que se passa?

Paulo Pisco

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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