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A Violação de Europa ou uma história de pinturas proféticas

Bom dia, boa tarde ou boa noite, conforme a hora a que me estiveres a ouvir. Se é que ouves, Europa querida. Bem sei que tens estado a aguardar esta quarta e última crónica que te é explicitamente dedicada, esperando que me debruce sobre os resultados das eleições europeias. Estou preocupada com as consequências do aumento significativo da extrema-direita no Parlamento Europeu. E está tudo dito.

Nesta tentativa de articular algumas ideias, fui levada por uma associação de imagens. Partindo de fotografias de trabalhos recentes do artista plástico português Gabriel AV, cheguei a Maxim Kantor (vejo pontes entre estes artistas) e à sua última exposição no Grão-Ducado. A exposição intitulava-se – muito a propósito! – «The Rape of Europe», em português «O Rapto de Europa», que é também o título da obra criada por Kantor para a ocasião (ver a ilustração desta crónica)[1].

Convém relembrar as circunstâncias em que esta exposição se realizou. Em fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, o Nationalmusée no Luxemburgo questionou-se sobre como reagir enquanto museu como mostrar um sinal de solidariedade com o povo ucraniano – algo que só por si merece uma standing ovation. O museu não possuía quase nenhum objeto ligado a este país e qualquer cooperação direta com museus ucranianos era impossível.

O artista estava já em contacto com o Nationalmusée com vista a uma nova exposição prevista para mais tarde. Pintor, escritor e filósofo de origem russa, judeu, possuidor de três passaportes distintos, Kantor vive atualmente em França. O artista assentiu em reunir 60 obras eminentemente políticas que poem cruelmente a nu o caráter totalitário e imperialista do regime russo. A exposição foi organizada em tempo recorde. No museu, as salas do último andar estavam vazias – o parquet ia ser renovado. O artista concordou em realizar a exposição nesses espaços vazios, em estado bruto, num despojamento total.

«O rapto de Europa» causou-me uma profunda impressão, porque, se a tela relata o presente, também profetiza o futuro. O que eu nela vi não foi um rapto mas uma violação[2] perpetrada por agressores múltiplos – a extrema-direita, o neoliberalismo, os grandes interesses económicos e financeiros, os novos senhores feudais que paulatinamente vão dominando o mundo, etc. Todos eles fazedores de guerras. Apagadas as Luzes, regressamos às Trevas. 

Ao consultar o catálogo da exposição[3] e outras fontes sobre a obra e o pensamento de Kantor, encontrei esta mesma ideia claramente formulada pelo próprio artista: a humanidade deu um gigantesco passo atrás e eis-nos de novo num período pré-iluminista. Os resultados das eleições europeias são, sem dúvida, uma manifestação deste retrocesso. E por isso vou repetir-te algumas das coisas que li, mesmo que não gostes, Europa querida. É que o novo Parlamento Europeu e os teus futuros líderes terão de pensar nisso.

Ao olhares para a tela de Kantor, não te assumas como uma pobre virgem inocente e indefesa nas garras daquele cujo nome não pode ser pronunciado. O artista pede-nos que vejamos na guerra da Ucrânia algo mais que um surto de loucura da Rússia, algo mais do que um ataque de uma força alienígena à Europa, mas sim algo de sistemático que só é inteligível se olharmos para as malhas do poder em torno do mundo, em cuja construção o mundo ocidental, e tu própria, Europa querida, desempenharam um papel crucial. 

O regime vigente na Rússia não nasceu por geração espontânea e está bem ancorado na nova ordem mundial da qual também tu fazes parte, Europa querida. Nesta nova ordem, quebrou-se o contrato social e a corrupção é o próprio princípio de funcionamento de uma sociedade que subjugou a democracia ao mercado e a política ao dinheiro.

A sacrossanta mão do mercado e a busca incessante do crescimento económico a qualquer preço não podem garantir a igualdade de direitos, a justiça social, a proteção dos mais vulneráveis e a luta pelo clima.  Mercado e democracia não são equivalentes e é o sangue dos pobres que paga este equívoco. A propósito, Europa querida, o que vais fazer com os teus pobres que são cada vez mais?

Em 2017, no rescaldo da tempestade das dívidas soberanas, os países da UE adotaram a Carta Europeia dos Direitos Sociais, um texto que estabelece um quadro social e objetivos. Estabelece 20 princípios – não vinculativos – divididos em três capítulos: igualdade de oportunidades e acesso ao mercado de trabalho, condições de trabalho justas e proteção e inclusão social. Mas o seu âmbito de aplicação é sobretudo simbólico, dependendo da (boa) vontade de cada país. No Parlamento Europeu cessante, a extrema-direita votou contra todas as diretivas sociais nos últimos cinco anos[4].

Para que conste, em 2023, 94,6 milhões de pessoas na UE estavam em risco de pobreza ou exclusão social, o que equivale a 21,4 % da população da UE[5]. Um barril de pólvora?

Acabaram-se as flores e os passarinhos. Tens mesmo de confrontar os monstros, Europa querida. Anise Kolz, a grande poetisa luxemburguesa escreveu que se outrora o homem tinha medo do futuro, agora o futuro tem medo dos homens. Tens de confrontar os monstros pintados nas telas dos artistas. Para que a profecia do retorno às trevas não se realize. Hoje, mais do que nunca são as tuas tradições humanistas, a tua riqueza cultural e o teu amor à arte que te poderão salvar da mentira e da barbárie. Agarra-te a elas.

Eduarda Macedo


[1] Tema recorrente na arte, o mito grego do rapto da princesa Europa por Zeus, o pai dos deuses, foi tratado ao longo dos séculos por muitos dos grandes pintores europeus.

[2] Kantor intitulou a sua tela em inglês. A palavra inglesa «rape» seria normalmente traduzida em português por «violação». No entanto, no domínio da arte, o português e as línguas latinas em geral preferem traduzir «rape» por «rapto». The Rape of Europe passa , portanto, a «O Rapto de Europa», da mesma forma que a escultura «Rape of the Sabine Women» passa a «Rapto das Sabinas». Usar o termo «violação» no título desta crónica é uma escolha da autora.

[3] Catálogo da exposição The Rape of Europe. Maxim Kantor on Putin’s Russia (Works 1992-2022). ISBN: 978-2-87985-713-8. Publicações do Musée national d’histoire et d’art, Luxemburgo

[4] https://www.woxx.lu/elections-europeennes-le-social-parent-pauvre-de-lue/?highlight=europe social

[5] https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Living_conditions_in_Europe_-_poverty_and_social_exclusion

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