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A queda da Palma de Ouro

Anatomie d’une chute” é um filme francês dirigido por Justine Triet a partir de um argumento co-escrito por Triet e o seu companheiro Arthur Harari.

O filme ganhou o festival de Cannes 2023 e tem como protagonista Sandra Hüller, no papel de uma escritora que tenta provar a sua inocência na morte do marido.

Esta obra teve a estreia mundial no 76.º Festival de Cinema de Cannes em 21 de maio de 2023 e acabou por ganhar a Palma de Ouro com unanimidade entre os jurados e um vasto consenso entre os jornalistas e outros festivaleiros.

Já sei o que estão a pensar. Que é mais um daqueles filmes megachatos que ganham festivais porque são pretensiosos ou porque como ninguém o entende decidiram dar-lhe a palma para não admitirem que não gostaram.

Este tipo de raciocínio até que se pode aplicar em alguns festivais e aqui bem que podia ser verdade, mas felizmente não é.

Também se podia imaginar que os jurados, com Ruben Ostlund a presidir, quisessem dar um claro toque feminino ao palmarés, começando pela Palma de Ouro. Recorde-se que se trata apenas da terceira mulher a receber este galardão, sabendo que a segunda foi conquistada em 2021.

Adiante. O filme é mesmo bom e tem potencial para agradar a todos os públicos.

Justine Triet disseca a vida de um casal e assina um filme experimental extremamente cativante. E, além de um belíssimo argumento, “Anatomie d’une chute” conta com Sandra Hüller, notável no papel de uma viúva sentada no banco dos réus.

“O que quer saber?” A primeira frase de “Anatomie d’une chute” é dita por Sandra Voyter, uma conhecida escritora alemã, entrevistada por uma estudante na sua casa, um chalé isolado nas montanhas.

A mulher está levemente embriagada pelo vinho que a vemos consumir, enquanto que o filho de 11 anos, deficiente visual, brinca com o cão. O papel do miúdo é interpretado pelo lusodescendente Milo Machado Graner, que é filho da pintora portuguesa Susana Machado.

Mas voltemos à ação. No andar de cima, Samuel, o marido, trabalha. Ou então está a fazer de conta, e aumenta o volume da música ao máximo. Ouve-se uma versão instrumental do título P.I.M.P. de 50 Cent. Será uma coincidência? Nada neste filme é fruto do acaso.

Duas horas e meia depois, o espetador já sabe muito sobre Sandra: a sua vida privada, o seu trabalho e as infidelidades. Toda a sua roupa, suja ou limpa, será exposta em praça pública durante o julgamento.

Acusada de matar o marido, cujo crânio quebrado foi encontrado ao pé do chalé, a escritora vai ser assediada com questões e questionamentos. E nós, como público, não sabemos muito mais. Foi suicídio ou homicídio? E se Sandra não tivesse nada a ver com o sucedido, já que o médico legista não exclui a intervenção de terceiros…

Um único flashback tira-nos da sala do tribunal. Uma gravação de som é apresentada como prova. Trata-se de uma discussão violenta entre Sandra e Samuel. Eles não falam a mesma língua e comunicam em inglês. É como se mudássemos de dimensão. E descobrimos que os ciúmes de Samuel por Sandra, que o eclipsa com o seu talento, são fortíssimos.

Justine Triet, a realizadora desta obra anormal, ao receber o prémio, reagiu como se estivesse em estado de choque. Demorou uns segundos para recuperar a palavra, mas acabou por fazer um discurso contra o governo francês e o seu presidente lamentando as mudanças de legislação sobre a idade da reforma e sobre os apoios ao cinema, acusando a França de ser um “país neoliberal e autoritário”.

Imediatamente, a ministra da Cultura publicou nas redes sociais que “esse país aumentou em 7% o orçamento para a cultura em 2023, dispõe de um seguro de desemprego para os intermitentes do espetáculo e o Estado financia filmes e realizadores que podem criticar publicamente o governo”.

Ou seja, em França o palmarés de Cannes tornou-se assunto político revelando velhas clivagens entre direita e esquerda, e sobre os apoios à cultura e, mais especificamente ao cinema.

Esquecem-se as polémicas, mas fica o filme. “Anatomie d’une chute” é um dos melhores trabalhos cinematográficos franceses dos últimos anos, apesar de a ação decorrer quase na sua totalidade dentro de um tribunal.

Raúl Reis

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