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Um país pacificado?

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Na constituição do 24.º governo da Terceira República Portuguesa, criticou-se ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, a presença de uma ministra que será filha de um antigo bombista do MDLP (1). 

De facto, o MDLP assassinou um cidadão conhecido como Padre Max, candidato a deputado da Assembleia da República pelo partido de extrema-esquerda União Democrática Popular, e uma sua acompanhante, mas, podendo eu estar enganado, os assassinos não foram agraciados com alguma ordem honorífica da República Portuguesa. 

Entretanto, Camilo Mortágua, pai de Mariana e Joana Mortágua, deputadas à Assembleia da República pelo partido Bloco de Esquerda, e autor do disparo que, durante o assalto ao paquete Santa Maria, em 1961, matou um jovem oficial cuja mulher estava grávida, foi agraciado pelo presidente Jorge Sampaio, em 2005, com o grau de Grande Oficial da Ordem da Liberdade da República Portuguesa (https://pt.wikipedia.org/wiki/Camilo_Mortágua_(político). A filha Mariana, porta-voz do dito partido, classificou o pai como «revolucionário romântico» (ou «idealista», não sei bem). O filho (ou a filha) daquele membro da tripulação do Santa Maria, hoje forçosamente em idade sexagenária, deve ter vivido os últimos cinquenta anos a engolir os panegíricos ao assassino do pai. 

Quando as FP-25(2) fizeram rebentar uma bomba na casa de um alegado «latifundiário» em São Manços, em resultado do qual morreu uma septuagenária e o seu neto de meses, Otelo Saraiva de Carvalho, comprovado promotor daquela organização terrorista, disse, como quem encolhe os ombros, que «todos os dias morrem crianças por todo o mundo»… Entretanto, lamentou-se por o seu filho ser ostracizado no liceu quando ele estava a ser julgado (julgamento cuja sentença acabou por dar em nada, visto que o presidente Mário Soares, num gesto de pretensa magnanimidade para com os «heróis da Revolução», o indultou). Até o indiscutivelmente moderado ex-presidente Ramalho Eanes insistia que Otelo tivesse funerais de Estado. 

Para a esquerda portuguesa (e, provavelmente, para toda a esquerda), não é a vida humana, em si, que importa — é a ideologia. Se a ideologia for «de esquerda», «progressista», as atrocidades que os seus «heróis» cometerem serão relativizadas. Se a ideologia for «de direita», «fascista», «reacionária», qualquer deslize ficará gravado nos anais do martirológio da «Revolução». 

Robert Mugabe, primeiro presidente do Zimbabué (antiga Rodésia) depois de terminar a «opressão da maioria negra pelo governo branco minoritário de Ian Smith», ordenou o massacre de Gukurahundi, na Matabelelândia (reduto do seu rival Joshua Nkomo), que a Associação Internacional de Investigação de Genocídios (IAGS) calcula ter vitimado vinte mil opositores, ultrapassando — de longe — tudo o que de negativo pudesse ter sido feito pela (aliás positivíssima) governação de Smith. Quem fala disso? 

A PIDE construiu — e utilizou — os campos prisionais da Machava, em Moçambique, de S. Nicolau, em Angola, e do Tarrafal, em Cabo Verde, o que se assume consensualmente como medonho (e não serei eu quem o conteste). Mas que, depois da «libertação» daquelas ex-colónias portuguesas, os partidos que as passaram a governar em regime totalitário (respetivamente, Frelimo, MPLA e PAIGC) tenham aproveitado as prestimosas «infraestruturas» para os mesmos fins de repressão é de somenos importância. Não foi em nome da «Revolução»? 

No tempo da guerra civil, em Moçambique, o SNASP (Serviço Nacional de Segurança Popular, temida polícia política da Frelimo) levava presos para uns baixios ao largo das paradisíacas praias de Vilanculos, largando-os no banco de areia quando a maré estava baixa. Umas horitas depois, com a subida do mar, afogavam-se. Os que tentavam nadar até à praia, normalmente, ou se afogavam também ou os tubarões comiam-nos. Em que anais do martirológio ficou isto proclamado? 

Ao 25 de Abril digo, com toda a convicção, «Viva!, e sempre» — mas é ao 25 de Abril retificado pelo 25 de Novembro(3).

Respondem-me: «O que é isso de 25 de Abril retificado? 25 de Abril há só um!» 

Não se iludam. Havia (houve) vários 25 de Abril: o que Álvaro Cunhal queria, o que Otelo queria, o que Mário Soares queria, o que Melo Antunes queria, o que Sá Carneiro queria, o que Eanes queria, o que Camilo Mortágua queria, o que José Mário Branco queria, o que José Afonso queria… Felizmente, triunfou aquele que queriam, sensivelmente, Soares, Eanes, Sá Carneiro e Melo Antunes… Os outros quedaram-se no rancor e no revanchismo. 

O 28 de maio de 1926(4) deveria ter ficado para trás. Revanchismo permanente só leva a ressentimento permanente. Restaurava-se (ou instaurava-se) a democracia e punha-se uma pedra no passado. Mas não: a esquerda vitoriosa optou por um triunfalismo visto como agressivo pelos que se sentiam derrotados. Ao longo dos últimos cinquenta anos, foi um permanente «25 de Abril sempre!», «Grândola vila morena», etc. Quando o governo de Durão Barroso (2002-2004) lançou o lema «Abril é evolução», no sentido de acabar, finalmente, com o espírito de guerrilha latino-americana (e terceiro-mundista) e tornar Portugal uma democracia normal de estilo ocidental, a esquerda deitou abaixo o Carmo e a Trindade. 

«Saúdo o 25 de Abril com todas as letras da palavra REvolução!» foi a sintomática e emblemática proclamação de Manuel Alegre. 

Eventos correntes e normalíssimos durante aquele governo eram sistematicamente perturbados por arruaceiros afetos ao BE e a movimentos afins, aos gritos de Grândola vila morena, tentando demagogicamente passar a ideia de que governos alheios à esquerda representavam um regresso a 24 de abril de 1974. 

Nas comemorações de um 25 de Abril sob governação de Cavaco Silva, o presidente Mário Soares, ao discursar, declarou provocadoramente que queria chamar ao palco Otelo Saraiva de Carvalho, sabendo muito bem que este estava condenado como terrorista e que, se as FP-25 tivessem logrado os seus objetivos, a cabeça do próprio Mário Soares seria das primeiras a rolarem. 

A atitude da esquerda ao longo dos últimos 50 anos não foi de apaziguamento e normalização da sociedade portuguesa. Foi, sim, de arrogante enaltecimento de uma suposta superioridade daquilo que tem conotação de «esquerda» e de aviltamento daquilo que se relega para uma chamada «direita». A «esquerda» arvora-se campeã da inteligência, do bom gosto e do pensamento correto. 

Genuinamente generoso e conciliatório foi, por exemplo, António Ramalho Eanes (presidente da República Portuguesa entre 1976 e 1986), que corajosamente permitiu aos dois últimos expoentes do regime derrotado, o presidente da República Américo Tomás e o presidente do Conselho Marcelo Caetano regressarem do exílio a Portugal «se e quando quisessem». Igualmente conciliatório era Ernesto Melo Antunes, coautor do programa do Movimento das Forças Armadas que, em 25 de abril de 1974, pôs fim ao regime ditatorial e a quem também importava lançar o país na via da democracia, não propriamente erguer punhos ao ar em arrogante revanchismo. Sintomaticamente, não são personalidades muito prezadas pela extrema-esquerda. 

Talvez a esquerda portuguesa devesse fazer um estágio no Ruanda (ou, pelo menos, na África do Sul), onde as feridas sociais eram muito mais dolorosas do que em Portugal. 

Salvaguardadas todas as proporções, em Portugal deveria ter havido um processo de catarse como o do Ruanda, onde, depois de punidos os diretamente envolvidos no genocídio de 1994, se tornou proibido distinguir as pessoas entre hútus e tútsis. O Ruanda aparenta ser hoje um país pacificado. 

Algo parecido ocorreu na África do Sul, que proibiu o revanchismo e o reavivar de feridas. 

Friso que se devem salvaguardar as proporções, pois o que ocorreu no Ruanda em 1994 foi o massacre de mais de meio milhão de membros da etnia tútsi por elementos da etnia hútu, durante dois escassos meses; e, na África do Sul, vigorou até 1994 o regime chamado apartheid («separação»), no âmbito do qual a etnia considerada branca era social e politicamente privilegiada. A situação portuguesa, com clivagens de natureza apenas ideológica, difere, obviamente. Mas o que importa assinalar é o espírito de conciliação que, naqueles dois países africanos, presidiu ao final dos fatores de instabilização social, com um decidido virar de páginas. 

Ora, o que em Portugal tem havido é «vencedores» (a esquerda) e «vencidos» (a direita, os «fascistas»). Ao longo dos últimos 50 anos, a esquerda assumiu uma postura de vitoriosa, logrando impor os seus valores: esquerda é progressista e bem-pensante. Em contrapartida, quem quiser fazer análises desapaixonadas e isentas é imediatamente vituperado com epítetos de saudosista, branqueador do fascismo ou mesmo, terminantemente, fascista. 

Só é bem-pensante quem alinhar com a convencional «esquerda». Os maus atos dela são relativizados, os da «direita» demonizados. 

A sociedade portuguesa ficou, e mantém-se, dividida. 

Notas de autor:

1) Movimento Democrático de Libertação de Portugal, organização terrorista com atividade durante o período que se seguiu ao 25 de Abril (1974). Entre as ações que lhe são atribuídas: tentativa de golpe de Estado em 11 de março de 1975, atentados bombistas a sedes de partidos de esquerda em 1976 e um atentado à bomba que vitimou o candidato a deputado Padre Max e uma estudante que o acompanhava.

2) Forças Populares 25 de Abril, organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987, sob a chefia de um dos principais protagonistas do 25 de Abril de 1974, Otelo Saraiva de Carvalho, inconformado com o rumo do país no sentido de uma democracia pluralista de tipo ocidental.

3) 25 de novembro de 1975: data de uma movimentação militar conduzida por setores das Forças Armadas Portuguesas que pôs termo ao Processo Revolucionário em Curso (PREC) e permitiu estabilizar a democracia representativa em Portugal.

4) Golpe de Estado protagonizado por militares e civis antiliberais que resultou na queda da Primeira República Portuguesa. Após a aprovação da Constituição de 1933, o regime, assumidamente ditatorial, passou a autodenominar-se «Estado Novo». Manteve-se no poder até à revolução de 25 de Abril de 1974. A sua figura mais emblemática foi António de Oliveira Salazar.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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