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Ódio ou amor à poesia? Em que ficamos?

Caiu-me ontem nas mãos um livro que ainda não li, mas que mesmo antes de o ler já fez mossa em mim. O livro intitula-se Ódio à Poesia, de Ben Lerner (tradução de Daniel Jonas), edição Elsinore, 2017. A sinopse de apresentação do livro diz que «a poesia, entre outros aspetos, tem uma caraterística que a distingue de todos os outros géneros literários: nenhuma como ela acende tanta polémica, tanta aversão, seja por parte de leitores, não-leitores ou, inclusivamente, de poetas. (…) Detestar a poesia parece ser, mais do que uma tarefa reservada a críticos, uma espécie de hobby partilhado que ultrapassa fronteiras e períodos históricos.» Claro que me apetece a este livro contrapor o A poesia salvará do mundo, de Jean-Pierre Siméon (Le Passeur, 2015). No fundo, talvez ambos os livros se aproximem na caracterização do facto poético e na receção do mesmo. Permanece, porém, a ideia do paradoxo: como pode odiar-se algo do qual se diz que salvará o mundo? Como pode a poesia ser tão odiada?

Quando falamos da poesia para a infância, o cenário não é, francamente, melhor. Sobretudo quando se colocam etiquetas à poesia para a infância: tem de ser divertida, aprazível e despertar (boas) emoções e sentimentos ou, não sendo estas possíveis, tem de ser educativa, pedagógica, etc…

Esbocemos aqui algumas considerações a opiniões sobre o valor instrumental da poesia (para que serve, qual o contributo que oferece) para oferecer uma síntese conclusiva.

Alguns sustentam que o valor da poesia, e sobretudo da poesia para a infância, está necessariamente ligado ao prazer ou à satisfação, defendendo que uma poesia é boa quando é agradável, aprazível ou divertida. Segundo esta opinião, o que realmente importa no texto poético é o prazer que dele obtemos e isto tem, obviamente, a ver com os nossos sentimentos e gostos pessoais e não
com a natureza intrínseca do texto.

Desta postura decorre um conjunto de consequências que não podemos problematizar aqui, enunciando, porém, alguns aspectos, a partir da reflexão de Gordon Graham (no livro Filosofia das Artes – Introdução à Estética, de 1997) sobre a obra de arte: em primeiro lugar, não é claro que a poesia seja uma verdadeira fonte de diversão; em segundo lugar, se o valor da poesia reside no prazer que proporciona, isso impossibilita as várias descriminações entre os vários estilos de texto poético, sendo valiosos apenas aqueles que, subjetivamente, proporcionam prazer.

Estes aspetos não negam o prazer que a poesia proporciona, apenas enfatizam que se o valor da poesia reside apenas no prazer que dela advém, a poesia não tem valor em si mesma, derivando este da apreciação dos leitores. Associada a esta está a opinião de que o valor da poesia está na emoção e no sentimento que exprime e comunica. Tal postura apresenta sérias dificuldades, entre as quais, o facto de se atribuir a priori aquilo que apenas o pode ser a posteriori, aferindo os méritos a partir da sua causa. Por outro lado, esta posição confunde emoção com poesia. Gordon Graham, no livro referido, explicita que, ainda que a ocasião da criação poética seja uma experiência emocional e a sua receção e leitura suscite emoção, “pode não ser verdade que a emoção seja o conteúdo da obra”, isto porque “uma emoção imaginada não precisa de ser sentida e a ausência de sentimento é uma marca de verdadeira criatividade artística”. Daqui que se infira que a emoção tem mais a ver com o modo como é conseguida do que com o facto de ocorrer ou não.

Outros ainda, sem desprezar o prazer e a emoção que a poesia desperta, sustentam que a poesia é sobretudo fonte de entendimento, “descoberta, criação e alargamento do conhecimento no sentido amplo de avanço do entendimento”. Sem confundir ou identificar entendimento com verdade, mas a partir de uma lógica da imaginação, da inseparável unidade entre forma e conteúdo e da não redução da atividade da mente humana ao pensamento, defende-se que a poesia, por causa do seu valor intrínseco, é um contributo significativo para o entendimento humano.

A poesia, sendo criação imaginativa, que muitas vezes nos possibilita prazer e emoção, leva-nos a “ver” e a pensar a nossa experiência de vida no mundo de forma diferente, e constitui-se como uma fonte de entendimento por ser uma forma peculiar de expressão e em razão de um conjunto de códigos que lhe são próprios.

Talvez melhor do que todas as “explicações” seja esta magnífica “Arte Poética” (in Sema, 1980), de António Ramos Rosa:

Se o poema não serve para dar o nome às coisas

outro nome e ao silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.
Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.
Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou ajudar a dormir o inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.
Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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