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Crónicas de Lisboa: a guardadora de livros

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Dizer que ela era uma criança sobredotada, seria um exagero. Era, antes, uma criança muito curiosa e interessada pelas matérias escolares e que estava sempre rodeada de outras crianças que não lhe invejavam a sabedoria, mas sim aproveitavam para tirarem dúvidas das matérias com ela. Desde muito cedo, o seu amor pelos livros era evidente. Lia tudo que podia e quem queria vê-la, era na biblioteca da escola. A sua curiosidade crescia com a idade e, nos graus seguintes do programa escolar, mantinha o fascínio pelos livros e não se limitava a ler apenas aqueles que faziam parte das leituras obrigatórias de cada disciplina escolar. Concluída a formação escolar, para acesso à faculdade, não teve dúvidas em dizer aos pais que queria ser “guardadora de livros” e, apesar da tentativa de dissuasão dos pais, que sonhavam para a sua filha uma carreira na advocacia, escolheu uma Faculdade que ministrasse a formação que lhe permitisse realizar o seu sonho desde criança. Na posse do seu diploma universitário de bibliotecária, candidatou-se a um lugar na biblioteca da sua cidade, mas, pelo seu brilhantismo na frequência do curso, recebeu um duplo convite para lecionar na faculdade que a formou. Aceitou, embora o seu maior sonho era ser “guardadora de livros”, pelo que aceitou as duas funções. Podia, assim, transmitir também aos seus alunos os saberes, mas acima de tudo, o amor pelos livros.

Contudo, sonhava com os tempos de infância e da adolescência, quando frequentava as bibliotecas das escolas, mas também as municipais. Era ali, naquele ambiente a “cheirar a livros” que ela queria realizar os sonhos e ser feliz. Candidatou-se ao lugar vago na biblioteca da sua freguesia e a felicidade que sentia era grande. Iria voltar, agora com outra idade e conhecimentos, a um lugar que lhe despertou o amor pelos livros. Entusiasmada, abraçou o projeto com alma e coração. Queria “falar” com os livros, conhecer cada um, como se fosse uma pessoa, e depois interagir com os leitores e despertar nos mais jovens o gosto que nela nascera bem cedo. Ajudar à escolha de leitura, sugerir e dialogar com cada um porque ela sabia que a leitura não deve ser um ato que se feche na última página de cada obra. A riqueza da leitura está muito na partilha que pode ser feita com os amigos, os leitores, individualmente, ou membros dos “Clubes de Leitura”. Os frequentadores da “sua biblioteca” eram heterogéneos, mas ela sabia que tipo e conteúdo de livros deveria sugerir ou aconselhar na leitura. Faria com que cada um sentisse que ela era uma amiga que estava ali para despertar hábitos de leitura, principalmente nos grupos de crianças ou jovens das escolas da cidade. Sentia-se retribuída por ver neles o resultado da sua dedicação. Não tinha filhos, e, talvez por isso, tentava “compensar” essa solidão, por opção, com a envolvência com as crianças, porque, infelizmente, os mais velhos foram deixando de frequentar a biblioteca em números anteriores. Eram, agora, outras as motivações dos jovens e dos adultos que deixaram de ver nos livros a fonte onde bebiam e colhiam os ensinamentos e alargavam os seus horizontes do saber. Os computadores e os telemóveis passaram a ser os maiores inimigos dos seculares livros. Assim, a leitura, apesar das múltiplas edições de livros, (“tudo quanto ficar escrito não será absolutamente nada de científico. Será exatamente nem científico nem falso, ao mesmo tempo) está num acentuado decréscimo, aumentando a iliteracia e que, mal gradamente, o ensino escolar, numa crise que se instalou há algumas décadas, não ajuda a inverter essa tendência, mas, acima de tudo, combater a iliteracia, porque “o idioma, escrito ou na sua oralidade, é a maior fortuna de um povo. Ele é a instrução dum povo. A outra, é a sua educação”.

Agora, ela sabe que longe vão os tempos em que até havia “carrinhas bibliotecas” itinerantes e que levavam os livros aos mais recônditos lugares deste país, porque a sede de aprender, lendo, era grande. Quase nem havia televisão… e ainda existem algumas carrinhas, mas são já muito poucas. (“Entrei numa biblioteca e pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida, não chegarão. Não duro nem para metade do espólio livreiro”).

Por este desvio de consumo da cultura estar em crise, ela já não sente o mesmo entusiasmo que a levou “pelo caminho dos livros”, mas continua, mesmo assim, a sentir uma grande paixão pelos livros e uma grande nostalgia por aquela que tem sido, durante quatro décadas, a sua “casa dos livros” e de que ela ainda é a sua guardadora. Ela personifica que há profissões apaixonantes, mas, para isso, é fundamental que possamos ter a possibilidade de escolher a profissão onde, para alem de sermos competentes, tenhamos a possibilidade de nos realizarmos nela. “Escrever é falar consigo mesmo, para que alguém nos entenda”, mas, (“quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade”). Palavras há muitas, diz o povo, mas faltam ações, sob pena de não salvarmos a humanidade. Os dramas perpassam, pelos nossos olhos, minuto a minuto. Assobiar para o lado?

 Serafim Marques 

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