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Esgotar-se-á a «aliança de esquerda»?

É fácil constatar que os grupos políticos convencionalmente ditos «de esquerda» revelam mais progressismo do que a chamada «direita» no tocante a iniciativas de caráter social.

A aliança constituída em Portugal na sequência das eleições legislativas de 4 de outubro entre três organizações de esquerda – Partido Comunista Português (juntamente com o Partido Ecologista Os Verdes, na realidade um seu apêndice), Partido Socialista (que é difícil classificar entre «centro» e «esquerda») e Bloco de Esquerda – está a apresentar à Assembleia da República, para aprovação, diversos diplomas relativos a temas que a opinião pública não raro classifica como «fraturantes» (leia-se: suscetíveis de criar clivagens e divisões no corpo social). Entre eles:

  1. A extensão a casais homossexuais do direito de adotar crianças;
  2. A regulamentação, incluindo universalização, da procriação medicamente assistida;
  3. Eventualmente, a regulamentação do chamado «testamento vital» e até a legalização do suicídio assistido;
  4. A supressão da taxa moderadora para a interrupção voluntária da gravidez (IVG) em estabelecimentos hospitalares do Estado.

A apreciação destes temas tem, forçosamente, de ser diferenciada. Não é por haver consenso entre quem os apresenta que devemos ajuizá-los em pé de igualdade. Procurando cultivar uma opinião isenta, há para mim, pelo menos, três que não me suscitam a menor preocupação e com os quais inclusivamente me regozijo:

  1. Tornar o direito de adotar crianças extensivo a casais constituídos por pessoas do mesmo sexo impõe-se como justo e coerente. Não é por ser constituído por um homem e uma mulher que um casal está automaticamente habilitado a adotar crianças: qualquer adoção é objeto de uma avaliação meticulosa das capacidades (materiais, morais, financeiras) dos potenciais adotantes. De modo idêntico, é injusto excluir desse direito, à partida, um casal constituído por pessoas do mesmo sexo. Tanto mais que a lei atual tropeça numa flagrante incoerência: dois homossexuais (homens ou mulheres), unidos pelo casamento ou pelo concubinato oficializado, não podem adotar crianças, mas cada um deles pode-o a título individual. E é uma prepotência do Estado os filhos biológicos de um dos membros de um casal homossexual não poderem ser oficialmente perfilhados pelo outro membro, mesmo quando todos coabitam em ambiente genuinamente familiar.
  2. A procriação medicamente assistida é um direito hoje restrito a mulheres unidas pelo casamento ou pelo concubinato heterossexuais. É minimamente justo que qualquer mulher que, por razões fisiológicas, não pode engravidar ou, pela sua simples vontade, não o quer possa ter acesso às técnicas de procriação medicamente assistida (inseminação artificial, barrigas de aluguer, etc.), independentemente do seu estatuto civil (solteira, casada, em união de facto, heterossexual, homossexual, etc.). A situação das mães solteiras ou viúvas, não necessariamente dramática para os filhos, desmente que a maternidade deva ser uma iniciativa restrita a mulheres unidas pelo casamento (heterossexual), a única maternidade «responsável» para quem se opõe a que o direito à procriação medicamente assistida seja universalizado.
  3. O «testamento vital», cujo debate na sociedade portuguesa já não é recente, consiste em o cidadão, numa fase lúcida da sua vida, declarar que prescindirá de tratamentos médicos inúteis se vier a encontrar-se em estado de doença incurável e terminal. Ao «testamento vital» costuma associar-se a questão do «suicídio assistido», em que um doente incurável é ajudado a morrer. Porém, confunde-se frequentemente o suicídio assistido (resultante de um pedido voluntário e consciente do doente) com a eutanásia (que consistiria em tirar a vida a alguém independentemente da sua vontade, ainda que por razões humanitárias). Sou favorável ao reconhecimento e ao enquadramento jurídico do testamento vital e do suicídio assistido.
  4. A supressão da taxa moderadora para a interrupção voluntária da gravidez (IVG) em estabelecimentos hospitalares do Estado é assunto mais delicado. Não está já em debate o direito à IVG sem outras condicionantes que não sejam um determinado tempo máximo de gestação. O que está em causa é o caráter comparticipado ou, pelo contrário, inteiramente gratuito dessa intervenção médica. Numa lógica que me pareceu pertinente, a coligação PSD-CDS, maioritária na Assembleia da República até ao passado dia 4 de outubro, aprovou há alguns meses a obrigatoriedade do pagamento de uma taxa moderadora, em condições idênticas às vigentes para outros atos médicos nos estabelecimentos hospitalares públicos. Com efeito, se qualquer ato médico pode estar sujeito a uma taxa por conta do paciente (aparentemente destinada a dissuadir o recurso desnecessário e, por vezes, abusivo aos serviços de saúde e, de qualquer modo, pouco elevada), não se compreendia que uma IVG, independentemente de se basear em motivos graves ou no simples desejo da grávida, beneficiasse de absoluta gratuitidade. Ora, a atual maioria de esquerda na Assembleia da República prepara-se para revogar aquele diploma, devolvendo à IVG o singular privilégio da gratuitidade de que até há pouco beneficiava. Trata-se de uma oportunista perversão do princípio do respeito pelos direitos individuais.

Para o pensamento tendencialmente «de direita», estes quatro temas são menores («pequenas causas», lhes chamou, por exemplo, Bagão Félix). Pessoalmente, não desvalorizaria a sua importância, mas, no Portugal atual, é-me fácil optar entre eles e a estabilização económica e financeira que a maioria PSD/CDS tinha vindo a conseguir ao longo da sua governação durante o quadriénio 2011-2015. Não seria impossível um governo tendencialmente conservador (ou, em todo o caso, não conotado com a «esquerda») tomar iniciativas de tipo «progressista» (passe o subjetivismo que este conceito encerra): por exemplo, foi o governo de «centro-direita» de Durão Barroso que regulamentou as uniões de facto. Mas a coligação PSD/CDS manifestou em diversas ocasiões a sua irredutível oposição a qualquer das três primeiras iniciativas legislativas que atrás citei. Sabendo que nem sempre se pode ter sol na eira e chuva no nabal, opto pelo mal menor.

Se o Partido Socialista tivesse à sua frente um dirigente isento, passaria para a oposição, viabilizando o governo da força política mais votada, a coligação PSD/CDS (e condicionando esse governo, como direito legítimo que lhe assistiria). Mas seria esperar demasiado de António Costa: tendo ele contestado a liderança do seu antecessor, António José Seguro, com base na pouco expressiva vitória por este obtida nas eleições europeias de 2014 — «vitória de Pirro», lhe chamou (note-se: «de Pirro», mas vitória) — sabia que, perante a sua derrota em 4 de outubro passado, a única atitude honesta e sem manha seria demitir-se. Ora, por muito que se afirme não haver no PS ninguém à sua altura, Costa quis evitar o risco de ser destronado. Por isso, fez das tripas coração e aliou-se a dois tradicionais e agressivos adversários do Partido Socialista, para os quais todos os meios valem e qualquer preço é barato quando se tem uma obsessão em mente — impedir o prosseguimento da governação PSD/CDS. Numa política sem manhas, as uniões e coligações entre partidos deveriam anunciar-se antes de se conhecerem os resultados finais. Mas, apostado em chegar ao cargo de primeiro-ministro, pouco importou a António Costa que, durante a campanha eleitoral, o eleitorado do seu partido nunca tivesse sido posto a par de uma hipótese de coligação com o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda, defensores de políticas que o PS não subscreve (designadamente no tocante à Europa e à OTAN).

A aliança que neste momento assume o governo de Portugal deverá começar por se entender em relação a diversas questões: desde logo, as quatro que mencionei no início desta crónica (e que, aliás, dispensariam entendimento a nível governamental, pois serão tratadas em sede parlamentar, onde dispõem de maioria favorável). Seguir-se-á, provavelmente, um consenso quanto ao orçamento de 2016. A partir daí, tudo se resume a um grande ponto de interrogação. A declarada propensão do Partido Socialista para o consumismo como motor do crescimento económico, juntamente com o despesismo que decorrerá das medidas preconizadas pelos seus dois parceiros na aliança de esquerda, arrisca-se a lançar a sociedade portuguesa, uma vez mais, na precariedade financeira.

O Partido Socialista terá duas opções:

Uma, ir cedendo às exigências do PCP e do BE (é de crer que estes não abdicarão de medidas destinadas, no seu entender, a inverter o «empobrecimento» decorrente da «política de austeridade» do anterior governo PSD/CDS). Com esta opção, António Costa talvez logre manter-se no poder, mas poderá atolar-se numa situação de endividamento crescente do país.

A outra opção é o PS arrepiar caminho na política despesista: sintomaticamente, é ridículo o aumento que o novo governo anunciou para as pensões: 0,03% (não há engano: não são «3 por cento», mas sim «3 por dez mil»!), e só para as que não excedam 628 euros, o que significa que quem hoje aufere uma pensão de 628 euros (o valor mais alto do grupo contemplado com o «aumento») ganhará mais 19 cêntimos por mês — caso para dizer que, em vez de tão vertiginosa subida, imporia o decoro um simples congelamento (mas assim não se distinguiria da política do governo anterior, que evitou sempre penalizar pensões desta faixa remuneratória). Devem ter querido aparentar que, finalmente, vêm aí aumentos e abundância, sem comprometer em demasia os cofres públicos.

Posto isto, é pensável que a aliança se esgote logo que as contradições comecem a vincar-se entre os seus constituintes — pelo que o título desta crónica talvez não devesse ser se, mas quando, a aliança de esquerda se esgotará.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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