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Annus horribilis?

What is the European Union?

Nos dias que se seguiram ao chamado «referendo do brexit», foi esta a pergunta mais frequente dos internautas britânicos no Google.

Quando quem vota para que o seu país abandone um projeto supranacional e depois — só depois — procura investigar de que projeto afinal se trata, é caso para suspeitar seriamente que algo correu mal nesta aventura. Diz-se que há já muito cidadão britânico arrependido de, sem bem perceber o que fazia, ter votado pela saída. Arrependidos ou não, a verdade é que muitos votaram em tudo menos no que estava realmente em causa.

Boris Johnson, o antigo autarca de Londres que foi um dos mais ruidosos promotores da saída, apressou-se a dizer que «there is no rush», provavelmente por, no fundo, temer um Reino Unido fora da UE, suspeita bem corroborada pela sua recente desistência na corrida pela substituição de Cameron no Partido Conservador (vergonhoso e grotesco «Borexit»). E o seu ex-amigo no governo, o ministro da Justiça Michael Gove, acérrimo defensor da saída e que agora se perfila como candidato à liderança dos conservadores, põe de lado a hipótese de, ainda este ano, comunicar formalmente à União Europeia a intenção de retirar o seu país. Ou seja, ir arrastando os pés para, oportunistamente, aproveitar os benefícios da permanência e adiar as desvantagens da saída. Porque quem está a esfregar as mãos de contente com este resultado são, por exemplo, os movimentos chauvinistas e eurocéticos de toda a Europa, o candidato Trump às eleições presidenciais americanas ou os fundamentalistas do Daexe.

Apesar de a campanha a favor da saída ter alardeado que iriam agora para o serviço nacional de saúde e para outros setores sociais «os 350 milhões de libras que o Reino Unido envia todas as semanas para a UE» (alguém procurou investigar esta estatística?), Nigel Farage, outro dos virulentos promotores do brexit, deu logo esse dito por não dito.

Por outro lado, os adeptos da saída concentraram-se no tema anti-imigração, caro ao eleitorado mais idoso e acomodado das zonas rurais e também às classes mais desfavorecidas, onde grassa o medo de que os estrangeiros venham aproveitar-se da segurança social britânica ou roubar empregos. Ora, independentemente da justeza destas convicções (sejam elas bem fundadas ou simples disparates), a verdade é que a presença do Reino Unido na UE não tem nada — mas rigorosamente nada — a ver com isso. A numerosíssima comunidade imigrante que há no Reino Unido (como em qualquer país ocidental, incluindo aqueles que, como Portugal, se tornaram metas de imigração sem deixarem de ser fontes de emigração) foi-se instalando mesmo antes da adesão às então Comunidades ou, pelo menos, muito antes de haver livre circulação de pessoas. De resto, o Reino Unido nunca aderiu ao Acordo de Schengen, o que lhe permitiu impedir a dita livre circulação de pessoas e manter sempre a capacidade de controlar as suas fronteiras.

Será que os eleitores britânicos mais xenófobos pensarão que os milhares de migrantes clandestinos que aguardam na cidade francesa de Calais uma oportunidade para atravessarem clandestinamente o Canal da Mancha vão desaparecer por milagre no momento em que o Reino Unido sair da UE? Claro que não vão desaparecer. A pressão migratória manter-se-á, tal como se manterá a procura do Reino Unido e de tantos outros países ocidentais, na UE ou fora dela, por parte dos refugiados sírios e iraquianos.

Logo após o referendo, ouvi Vladímir Pútin negar que o brexit fosse positivo para os interesses russos, mas acrescentar que compreendia que os britânicos quisessem manter o controlo das suas fronteiras (não as controlavam?) e, pasme-se!, quisessem manter a sua moeda (será que a libra deixara de existir?)… Do presidente da Rússia esperar-se-ia estar mais bem informado em matéria internacional.

O pior é que a campanha a favor da permanência não soube desmistificar estas atoardas. A culpa será muito do primeiro-ministro David Cameron, aparentemente convencido de que o voto maioritário na permanência eram favas contadas e de que, convocando um referendo que estava seguro de ganhar, daria a machadada final no partido nacionalista UKIP, de Farage. Mas é também, indiretamente (e muito mais remotamente), dos políticos europeus, sobre quem recai a falha mais grave do projeto europeu: o não ter logrado conquistar o coração dos cidadãos. Na generalidade, vamos beneficiando das suas realizações — apoio a projetos de desenvolvimento; mercado único, com livre circulação de pessoas, bens e capitais e constituindo um inestimável espaço de intercâmbio cultural, de estudo e de emprego para a juventude dos Estados-Membros; moeda única, que facilita a mobilidade e é um padrão de comparações; legislação globalmente defensora do ambiente e dos interesses do consumidor e do cidadão; estabilidade política, porque, apesar de todos os reveses e vicissitudes, nem nos Estados-Membros da UE mais duramente atingidos pela crise dos últimos sete anos se manifestaram riscos sérios de regimes ditatoriais — e, no entanto, não assumimos a União Europeia como um acervo nosso. Continuamos a ser portugueses, e espanhóis, e gregos, e suecos, e irlandeses, e polacos, e alemães, e belgas, e…, e encaramos a «cê-é-é» como uma entidade alheia da qual só esperamos benesses. Este, para mim, o maior insucesso dos construtores da Europa — oxalá reversível. A União Europeia revelou-se sempre muito desajeitada a divulgar a sua imagem, como entidade que, mau grado o que de menos positivo possa conter, é algo valiosíssimo que aconteceu entre os países europeus e que, por isso, deve ser defendido.

Voltando ao brexit:

Um referendo destes, suscetível de implicar, no rumo de um país, mudanças drásticas e irreversíveis (pelo menos a curto/médio prazo), não se convoca de ânimo leve. De qualquer maneira, deveria ter sido muito bem planeado. Não se compara às eleições para um governo, local ou central, pois um governo é, inerentemente, temporário e reversível.

Tomando o caso português como exemplo: se não houver partidos decididos a coligarem-se formando uma maioria de deputados, pode haver um governo sem apoio maioritário na Assembleia da República (desde que haja um compromisso tácito de não-obstrução a esse governo por parte de uma maioria de deputados); e, para ser viabilizado na Assembleia da República, basta ao governo ter o apoio (ou pelo menos a não-obstrução tácita) de metade dos deputados mais um. Agora, para alterar a Constituição, são necessários dois terços dos deputados — precisamente porque se trata de algo muito mais drástico, para o qual não bastam maiorias tangenciais.

No referendo de há uns anos sobre a aprovação da lei do aborto, ficou estabelecido, desde o princípio, que o resultado não seria vinculativo, ou seja, a lei seria mesmo adotada pelo governo independentemente do resultado do referendo (deu-se o caso de este ter sido no sentido da aprovação). Do mesmo modo, Cameron, ao convocar um referendo (que é um ato ad hoc, isto é, com caráter contingente, não obrigatório), deveria ter declarado ou que ele não era vinculativo (mas meramente indicativo da tendência do eleitorado) ou que só teria validade se uma maioria esmagadora de eleitores (por exemplo, dois terços) se pronunciasse a favor da saída. Assim, a saída obteve uma maioria tangencial, mas vai forçar o país a um passo drástico, quando há uma outra metade do eleitorado com vontade diferente. A quantidade de votos, quer no sentido da saída quer no da permanência, foi da ordem de 17 milhões para cada campo, com uma diferença de poucas centenas de milhares. É inadmissível que isto conduza a uma mudança tão radical. Além disso, como a participação foi de cerca de 72% dos eleitores britânicos (o que, em eleições corriqueiras, seria muito bom, mas não o é num referendo destes), e como, desses 72%, pouco mais de metade votaram a favor da saída, segue-se que cerca de 37% do eleitorado britânico prefere que o seu país saia da UE. Estando em causa um novo rumo, de repercussões drásticas e imprevisíveis, é pouco.

Por certo, nada está irreversivelmente determinado: as consequências de um brexit efetivo poderão custar caro ao Reino Unido, não só a nível económico e financeiro como até em termos da sua integridade territorial (risco de separatismo na Escócia, na Irlanda do Norte e até em Gales); uma petição em linha que apela à realização de um novo referendo terá já ultrapassado quatro milhões de assinaturas (mesmo deduzindo as falsas ou inválidas) — pelo que parece ser crescente a percentagem de britânicos convencidos de que a saída acabará por ficar «em águas de bacalhau». Mas, para já, tudo isto é wishful thinking, um mero desejo. Porque as perspetivas são de, a curto prazo, o Reino Unido sair mesmo da União Europeia. E se, em novembro próximo, as eleições norte-americanas conduzirem à presidência dos Estados Unidos um extremista irresponsável como Donald Trump (hipótese não descartável), 2016 arrisca-se a ficar para a história do Ocidente como um autêntico annus horribilis.

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