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Espiritualidade. Verdade. Inebriação

Se há duas realidades que hoje urge distinguir de forma clara, são elas a “religião” e a “espiritualidade”. Seria longa, e este não é o espaço, uma reflexão em torno das diferenças e dos mal-entendidos do corrente uso da palavra religião. Abrindo aqui um grupo de textos sobre espiritualidade, percorrerei um grupo de fósseis directores que nos darão pistas para uma compreensão da complexidade do que podemos entender por espiritual. O ponto de partida de todos os textos serão as proximidades que a língua nos faz entender, mostrando como certos aspectos de cultura são mais sólidos se entendidos em contexto.

Na língua portuguesa a palavra “espírito” sofreu um sem número de re-significações que nos abriram um leque imenso de significados. O bacalhau pode ser espiritual, querendo-se dizer que é leve, envolto em molho suave; um amigo, em conversa, pode ser espirituoso, quando tem assomos de inspiração bem-humorada.

Pouco nos lembramos que na nossa cultura esta palavrita vem da teologia cristã do Espírito Santo, centrada na descida desta dimensão de Deus sobre cada um dos crentes, permitindo o que a narrativa bíblica nos descreve no episódio do Pentecostes.

E esta descida do divino sobre o humano, descrita no livro de Actos dos Apóstolos, permite aos discípulos de Jesus um claro estado alterado de consciência que permite, por exemplo, falar línguas estranhas, para além de fazer milagres, como que acedendo a um conhecimento superior, externo, divino.

É aqui que percebemos por que se é “espirituoso”. Ou, melhor, que se percebe porque as bebidas que mais rapidamente embriagam são, no inglês, “espirituosas”. Os spirits, mais não são que um verdadeiro marcador de sentido que nos mostra como os ecos do Dionísio grego e do latino Baco estão profundamente montados na nossa estrutura mental, da qual a língua é imagem.

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A relação do vinho com o mundo das religiões parece natural quando damos atenção à cor do rubro néctar. O vinho parece ter sido assimilado à imagem do sangue, ambos vermelhos, ambos comungando da mesma natureza que se expressa no sentido da palavra «adam» em hebraico: Homem, sangue, barro, vermelho.

De facto, é comum em textos mitológicos de origem semita encontrar trechos que fazem exactamente esta ligação entre sangue e vinho: “sangue de cepas”, diz-se no Ciclo de Baal, corroborando o que mais de milénio e meio depois, Jesus consignará – por outros dois mil anos – na imagem eucarística do “sangue de Cristo” tomado através do cálice de vinho – acredite-se, ou não, na transubstanciação.

Mas o vinho é também o estereótipo que Camões retomou ao afirmar que a Índia era a terra de Baco, rendida ao vinho com que se honrava este deus. Contudo, a imagem cimentada por uma cultura moralizante cristã, despiu o sentido teológico das bacanais, restringindo tudo a um quase folclore de bebedeiras em que o prazer, entretanto transformado em sentido de excesso, era sinónimo de perdição e de pecado.

De facto, a frase de Plínio, in vino veritas, apenas passou a ter um sentido: assimilou-se esta ideia de “veritas”, verdade, ao campo da simplicidade, da emoção que liberta do medo e possibilita, por exemplo, dizer tudo. Com o vinho, diz-se a verdade. Mas este não deveria ser o sentido não-cristão da popular frase latina.

Ao bom sabor oracular – o mesmo que Dionísio dividia com Apolo no oráculo de Delfos – a verdade era, acima de tudo, A Verdade: o conhecimento divino que se obtinha através de estados alterados de consciência. As bacantes e outros cultuantes de Dionísio / Baco tomavam vinho, não apenas pelo prazer da bebedeira, mas porque ao fazerem-no comungavam com a natureza do deus.

Neste sentido, o vinho possibilitava, tal como muitas outras técnicas de adivinhação, oraculares ou proféticas, chegar a uma dimensão de conhecimento que estava para lá do humano. Não será por acaso que esse mesmo vinho tenha vindo a ser proibido pelas religiões que se assumiram como tendo a última revelação, terminando-se, assim, os ciclos de profetismo. Falamos, especialmente, do Islão.

A verdade da frase latina, mais não é que a Verdade bíblica citada no título (João 8: 32): a Verdade que apenas a divindade concede, não por pesquisa academizante, mas por experiência espiritual. E essa é a Verdade que salva, a Verdade que é o próprio conhecimento de Deus. O conhecer a Deus.

É que o vinho, na sua própria auto-criação, nos processos químicos que sofre desde ser simples mosto até, depois de fermentado, se transformar, efectivamente, em vinho, é imagem da metamorfose, da passagem de uma forma, de um estado a outro: o vinho é, ele mesmo, um estado outro, um estado alterado de natureza, em que uma realidade, depois de febril e de isolada, se transformou noutra.

Socialmente, o vinho não é exactamente isto? A própria natureza humana que possibilita a sua superação, o derrubar das inibições, o vencer dos constrangimentos, e a assumpção de algo novo, perturbador e perturbado, mas liberto, solto, mais próximo do inconsciente, regra geral escondido e acabrunhado, e mais distantes dos ditames regulamentares e policiadores do social?

Parece que só este seria o caminho da salvação.

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