Ao ritmo acelerado da “Rapsódia Portuguesa”, a harmónica deslizava alegremente, manejada por mão hábil, nos lábios húmidos do Zé Maria.
Os acordes diluíam-se na escuridão da noite, por entre urzes e giestas (às vezes por densos e sombrios pinheirais), onde apenas grilos e ralos mais audaciosos ousavam alterar o silêncio profundo daquela morna e suave madrugada de agosto.
Tateando por um caminho pedregoso e ondulante, lá íamos aspirando o aroma perfumado e purificador da madrugada, adivinhando-se mais um dia de calor intenso que daí a algumas horas faria estalar as pinhas e as sementes das giestas.
Por um atalho estreito, com pedras soltas alcatifando o chão, caminhávamos cautelosamente, intervalando as imprevisíveis escorregadelas com os solavancos provocados pela irregularidade do carreiro.
E só logramos deitar um furtivo olhar à nossa volta quando as copas das árvores cediam espaço para o prateado da lua iluminar o caminho agreste nos permitia admirar, ao longe, a imponente silhueta do Chão Velho.
Aqui, o Zé Maria, interrompendo abruptamente os acordes melodiosos da “Rapsódia”, lembrou:
– Eh, pá, por estas bandas, às vezes, aparecem lobos esfomeados. Vêm lá de cima, da serra. Falta de comida, é o que é…No monte, os caçadores matam tudo e os animais descem ao povoado. Antigamente era só no inverno, mas agora…
Após silêncio perturbador, voltou à carga:
– A gente começa a ouvir uns zunzuns esquisitos e às tantas lá estão eles, mais à frente, à nossa espera, estáticos, com olhos de fogo, a observar… Contou o meu pai que um dia ainda eles vinham longe e já sentia uns arrepios do caraças e os cabelos em pé.
Dito isto, voltou à “Rapsódia Portuguesa”…
– Os lobos, de noite, têm olhos que parecem tições bem acesos, muito brilhantes! – acrescentou mais adiante o Zé Maria, sem dar mostras de mínima perturbação.
– O Manel do Canchoso contou que uma noite foi acompanhado por um corpulento lobo até ao Pinheiro Manso, seguido à distância por mais uns tantos que formavam a alcateia, mas não temeu e continuou calmamente o seu caminho. Como não botou a fugir ou mostrou cagaço, o lobo acabou por desistir.
E sentenciou:
– Eles só atacam os medricas!…
Aregos ainda estava longe. Atravessamos agora um denso pinheiral. As sombras esquisitas, o piar dos mochos e o esvoaçar das corujas, que são aves nocturnas e que são de mau agoiro (como se diz por aqui, embora isso não corresponda à verdade), assustam.
Mas quando os primeiros raios de sol vieram, finalmente, iluminar a silhueta da serra e avistamos Freigil, voltou a boa disposição, a alegria da caminhada.
Foi então que o Zé Maria irrompeu, inspirado, com “A Saia da Carolina”…