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Que triste

Passou uma semana. A época de apuramento de responsabilidades parece estar finalmente aberta. Uma coisa é certa. As vítimas de um dos maiores desastres de que há memória em Portugal vão começar a ser arremessadas de um lado para o outro do campo político. Sessenta e quatro. Este é o maldito número que não sairá da ribalta tão cedo.

Nas próximas semanas, iremos ver de tudo. O aproveitamento político-mediático vai ter muitas frentes. Desde políticos a transformar-se em arautos da moralidade, a jornalistas a fazerem-se passar por microfone da suposta contestação do povo. No outro lado, iremos assistir a defesas sem causa e a tentativas de sucesso difíceis de defender quando a realidade fala por si. Que triste.

Mais dia menos dia, e volta tudo para Lisboa. O que se irá trazer do interior? Pois bem, os números. Os números que, como já referi, servirão de arma de arremesso e de escudo de defesa. Volta-se para a redoma do outro Portugal. Volta-se para o Portugal aconchegante porque já chega do desconforto de estar longe de tudo. Ninguém está habituado a isso. Já chega e sobra o tempo em campanha, onde a obrigação manda que se vagueie pelos sítios inóspitos e se mostre que todos (os votos) contam.

Talvez por estar longe e rodeado de pessoas de outros países que, naturalmente, não nutrem o mesmo interesse e proximidade pela dimensão da catástrofe, acompanhei particularmente as incidências da tragédia. Para além do óbvio sentimento de tristeza e perplexidade referentes ao acontecimento em si, senti-me pequeno. Inútil. Um citadino arrogante e pretensioso que, quando lhe perguntam de onde é solta, com laivos de altivez e superioridade, um seco, “do Porto”. O que, ainda por cima, é mentira. Sou só mais um que, com a desculpa de facilitar o trabalho de localização a quem me ouve, diz o que quer acreditar ser uma mentira para abreviar caminho. Mas não. A triste realidade é outra.

Sabe bem melhor dizer que se é do Porto. Ou de Lisboa. Que se frequenta regularmente a mais recente hamburgueria da cidade, que se passeia com naturalidade ao fim do dia nas praças que todos conhecem, que se sai à noite nas Galerias de Paris ou no Bairro Alto. Que bem que fica viver na metrópole!

Desde que estou aqui no Luxemburgo, como é óbvio, já falei com muita gente oriunda de Portugal. Em determinada parte da conversa, surge sempre a pergunta de onde somos. Nesse momento, lá apareço eu com a triste mentira do Porto. Ao mesmo tempo, em quase todos os casos, a pessoa responde a verdade que me faz sentir ainda mais humilhado perante a minha consciência. Na grande maioria das vezes, nem sei onde ficam os sítios que o meu interlocutor refere. Mas minto mais uma vez e digo que sim, que sei exatamente onde fica. Mal tenha oportunidade, lá vou eu ao mapa do telemóvel procurar onde se localiza ao certo a cidade do meu país que eu tinha obrigação de saber onde é. Que triste.

Na verdade, após tomar conhecimento dos incêndios e da hecatombe que provocaram, adotei o mesmo procedimento e fui ver ao certo onde ficava Pedrogão Grande, saber como se vai daí para Castanheira de Pera ou Figueiró dos Vinhos. Não fazia a mais pequena ideia que existia uma aldeia chamada Vila Facaia, ou Nodeirinho. Agora, após estas estarem reduzidas a pouco mais de nada, já sei. Logo eu, logo nós. Os mesmos que ficam ofendidos quando alguém pensa que Portugal é parte de Espanha. Na verdade, sou só mais um ignorante que inconscientemente pensa que é possível existir um centro num planeta redondo.

Como já muita gente referiu, também espero que, ao menos, estes tristes acontecimentos sirvam para alterar o que há muito está errado. Que se faça o debate acerca do reordenamento florestal, que se discutam os meios e as estratégias de combate. E, acima de tudo, que essas discussões não sejam levadas pelo Verão, nem apagadas pela chegada da chuva e do frio.

Porém, mais do que isso, e talvez esteja a pedir muito, é preciso alterar consciências. Alterar a imagem que está implementada no pensamento de muitos de nós e na qual, como já referi, tristemente me incluo. Deixemos de atribuir diferentes valores à vida que todos temos por igual.

Não podem existir pessoas de terceiro mundo que perdem a vida em barcos de borracha a caminho do mundo de primeira. Tal como não podem existir pessoas que não têm acesso a condições básicas de segurança e proteção no mesmo país onde os holofotes se viram para discussões intermináveis acerca da cidade que irá candidatar-se para acolher uma agência europeia, ou a discutir quantas paragens de metro são precisas em Lisboa. Sinto que estou a cair no populismo barato mas, o que é certo, é que se os alicerces da casa não são bons, não vale a pena começar a construir o telhado.

Quanto a mim e à minha ignorância, a partir de agora, deixarei de ser do Porto. Nem tão pouco serei de Matosinhos. Agora, serei de Lavra. Porque é aí que eu vivo. Uma pequena vila a norte do Porto onde termina o concelho de Matosinhos para começar o de Vila do Conde. Um local de gente que vive do mar e do campo. Mas não me posso alongar muito. Porque todos os dias durante muitos anos da minha vida passei-os lá e, sendo honesto, sei pouco, demasiado pouco acerca de Lavra. Conheço as praias e os campos por onde fujo ao trânsito provocado pelas primeiras. Não sei mais nada. Que triste.

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