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Viagem americana

Em meados de janeiro de 2017, voei para os EUA, o coração como um cavalo à solta e a pele a estalar de excitação. Era a minha primeira visita àquele país, a única que lhe fiz. O meu destino era Portland, no Estado do Oregon, na costa oeste. Primeiro, doze horas de voo até São Francisco, para aí permanecer por três dias. «Se fores a São Francisco, lembra-te de pôr algumas flores no cabelo», dizia a mítica canção de Scott McKenzie, tantas vezes entoada ao calor de fogueiras noturnas nas praias da Caparica.

São Francisco parece Lisboa, diziam os meus anfitriões, Emma, a francesa e Johannes, o alemão, um casal improvável unido por um irremediável coup de foudre. Naquela cidade branca, surpreenderam-me a luz e as colinas, as temperaturas tépidas durante o dia, o pequeno-almoço na varanda visitada pelos colibris, a profusão de flores em janeiro, os serões frescos, o bairro chinês, o bairro italiano e o café Trieste, o bairro gay e aquela borboleta saltitante, de óculos escuros, fio dental, peúgas e sapatos italianos do mais fino cabedal, a simpatia e a delicadeza das pessoas, o pavor omnipresente do terrível terramoto a que não escaparemos, o preço horrendo dos restaurantes chiques downtown, a prisão de Alcatraz, atração turística cujas visitas têm de ser reservadas com meses de antecedência, a ponte Golden Gate, que não atravessei a pé irremediavelmente vencida pela minha acrofobia.

No aeroporto de Portland encontrei-me com Sabine, a austríaca. Conheceramo-nos numa formação em Londres e simpatizado uma com a outra. Ao longo de vários seminários e de infindas conversas, tínhamos começado a acalentar o sonho de ir aprofundar os nossos conhecimentos de process work – psicologia orientada para o processo – a Portland onde ensinava o seu fundador, o carismático, original e inclassificável físico e psicoterapeuta transpessoal Arnold Mindell, profundamente empenhado na transformação social e na resolução de conflitos.

Vencidos os múltiplos desafios financeiros logísticos que tal empresa nos colocou, eis-nos então em Portland, a Cidade Esquisita. A palavra de ordem de quem nela vive, pintada em letras garrafais em várias paredes decrépitas da cidade, é «Keep Portland weird» (Mantenha Portland esquisita). À chegada, deparámo-nos com o inverno mais rigoroso de que havia memória naquelas paragens. Nevara copiosamente e tanto a cidade como os acessos à mesma estavam intransitáveis, cobertos por uma carapaça de gelo. Nada a fazer, a impreparação para um tal cenário era total e absoluta. As autoestradas encheram-se de veículos imobilizados, os hospitais de pessoas com pernas ou braços partidos. A cidade começou a descongelar três depois. No apartamento onde Sabine e eu iríamos coabitar durante cinco semanas, o aquecimento não funcionava. E nem o entusiasmo dos primeiros encontros no instituto nem o pequeno radiador elétrico emprestado por uma das professoras nos impediu de gelar noites seguidas. Sabine dormia com o barrete de lã na cabeça. Eu dormia de luvas.

O aquecimento foi reparado cinco dias depois. No dia da tomada de posse de Donald Trump.

No dia seguinte, sábado, participei, com os meus colegas, na maior manifestação da minha vida.

Era a Marcha das Mulheres, uma jornada de protesto de âmbito mundial contra as posições e a retórica misóginas de Trump, à qual aderiram também muitas pessoas com outros desgostos, por exemplo, o de ver um supremacista branco ocupar a Casa Branca. Só depois vim a saber que aquela jornada tinha sido, até à data, a maior jornada de protesto da história dos EUA e que a manifestação em Portland fora a maior que jamais percorrera a Cidade Esquisita, estimando-se a participação em cerca de 100 000 pessoas.

Mais do que a magnitude da manifestação, foi a alegria que me encantou. Havia música, cartazes, vozearia e mil palavras de ordem. Havia uma energia vibrante e avassaladora no ar! Havia homens e mulheres de todas as idades, de todas as cores de pele, de todos os credos, de todas as condições sociais. Havia velhos em cadeiras de rodas e sem-abrigo a empurrar os seus carrinhos de supermercado. Havia famílias inteiras a caminhar com crianças pequeninas pela mão, ao colo, às cavalitas ou aos ombros. A caminhar durante horas sob chuva incessante. Nem a polícia nem os serviços de urgência tiveram de intervir. Não se registou nenhum incidente. Acabei por desaguar num pequeno café de fim de tarde encharcada até aos ossos. Tomei um chocolate quente. Com whisky e natas.

Na semana seguinte, num momento em que, no instituto, nos foi pedido que escolhêssemos um tema fraturante, uma polaridade para investigarmos em conjunto, nenhum dos americanos se atreveu a enfiar o nariz na merda. Foi um de nós, europeus, a fazê-lo, quando já quase não havia esperança de que o elefante no meio da sala fosse nomeado – o Presidente. Libertos da vergonha silenciadora, os americanos agradeceram aliviados. E o que se passou nas duas horas que se seguiram é indescritível. O propósito não era apenas dar voz a todas as forças e os argumentos pró e contra o trumpismo – independentemente das convicções pessoais de cada um. Era também encontrar brechas para olharmos para as áreas mais ocultas e menos bonitas de nós próprios, para a nossa sombra, como diriam os psicólogos junguianos. Sei que, a dado momento, me envolvi literalmente à pancada com uma outra mulher, que, intuitiva e sardónica, rasgou o véu que ocultava – de mim própria – o meu apetite por visibilidade e poder. Foi a intervenção enérgica do professor que nos separou.

Ao longo das cinco semanas de formação voltamos algumas vezes a este episódio trumpiano. Know thyself. Conhece-te a ti próprio ou como raio queres trabalhar com pessoas? Acolhe tudo o que há em ti sem rejeitar nem julgar o que tens de pior. Quando detestares alguém, quando olhares para o teu inimigo, pergunta-te: Em que sou eu parecido a ele? Em que é que eu sou Trump, arrogante, hipócrita, manipuladora, mentirosa, predadora, fútil, superficial, interesseira, disposta a fazer a guerra?

Esta intensa confrontação connosco próprios e com os dramas do mundo, passou também também pelos trabalhos manuais, pelas artes e pela música. Divertimos à grande! Houve momentos de criatividade explosiva, de alegria pura, de riso franco e incontrolável. «Não, hoje estamos fartos de conversas sérias – dizíamos – «hoje vamos desenhar, construir máscaras, fazer fantoches, inventar histórias, cantar, fazer rufar tambores, ficar esparramados na alcatifa a olhar para o teto». E brincávamos. Maravilha!

Fora das modestas paredes do pré-fabricado que acolhia o instituto, havia a Cidade Esquisita. Passeávamos, eu, Sabine e os outros, por vezes todos, por vezes em pequenos grupos, consoante os interesses e o budget de cada um. Havia o jardim japonês e os food cart pods espalhados pela cidade, as carrinhas que propunham comida deliciosa do mundo inteiro a preços imbatíveis. Havia aquele bar de vinhos minúsculo cuja carta incluía um excelente vinho português e aquele o outro bar especializadíssimo em cervejas belgas, como se em Portland não houvesse uma riquíssima produção de cerveja artesanal. Sozinha, perdi-me na Powell’s, a maior livraria do mundo, que alberga cerca de um milhão de livros e ocupa um quarteirão inteiro, e na Blick , a maravilhosa loja de materiais para todas as artes. O cineminha mais perto de casa exibia I am not your negro (Eu não sou o teu negro)o documentário baseado no manuscrito inacabado do escritor e ativista James Baldwin. Havia os supermercados a abarrotar numa abundância de fruta e legumes lustrosos e coloridos, cultivados e colhidos pelos tais imigrantes ilegais que o Presidente queria expulsar. «Mas quem é que vai fazer o trabalho???», lamentava-se, incrédulo, um taxista Uber de origem mexicana com quem um dia conversei. E havia também muitos, muitíssimos sem-abrigo, com quem era fácil falar e partilhar comida ou o que quer que fosse, porque aceitavam tudo. Miséria.

Confesso que nunca esperei assistir a segunda tomada de posse de Trump num mundo mais irrespirável do que era há oito anos. E hoje, aqui na Alemanha, em vésperas de eleições que verão certamente uma progressão da direita xenófoba, penso em todos vós, com quem eu praticamente vivi durante cinco semanas em Portland. Uns, cruzo esporadicamente no Facebook, outros perdi de vista. Sei que, de uma forma ou de outra, prosseguem o vosso processo, os vossos projetos. Ou outros. E que continuam atentos, críticos e solidários.

Lembro-me de, em 2017, em Portland, vos ter cantado uma canção portuguesa. Dizia que mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não. Há sempre alguém que pinta primaveras. Sobre o que é resistir escreveu Loryn Brantz, escritora americana, num curto poema intitulado «Inauguration 2025»:

In a time of hate

Love is an act of resistance

In a time of fear

Faith is an act of resistance

In a time of misinformation

Education is an act of resistance

In a time of poor leadership

Community is an act of resistance

In a time like this

Joy is an act of resistance

Resist. Resist. Resist.

Repeti-lo-ei incansavelmente para mim própria, meus amigos. Contra a escuridão, o riso. Contra a solidão, a partilha. Contra a desumanidade, a arte. Contra o medo, a alegria. Resistiremos.

Eduarda Macedo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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