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Urbi Et Orbi Et Oeconomia: a Humanidade ao espelho – 2

A morte saiu à rua num dia assim
e trouxe uma doença virulenta
que se julga rainha caprichosa
de decidir quem vive e quem morre
por decreto parou toda a gente
essa gente toda que andava tão distraída
e tão arredada de si mesma
numa roda de hamster louca
a afiançar que não, não se pode parar
não se pode parar nunca
mas que teve mesmo de parar
e deter a sua correria alienada
teve mesmo de ficar em casa
quieta.

A morte saiu à rua num dia assim
e as pessoas deixaram de o poder fazer
deixaram de poder ir trabalhar
deixaram de poder ir às compras em família
deixaram de poder fazer a sua vida, como se diz
ficaram em casa
deixaram de poder jogar futebol
de ir passear, de conviver
de se reunir, de se divertir
ficaram em casa
deixaram de poder despedir-se dos seus mortos
de abraçar os pais, os netos e os avós
as crianças deixaram de poder ir à escola
deixaram de poder brincar com primos e amigos
ficaram em casa
as pessoas deixaram de poder sorrir
porque todos usavam máscara
quando saíam à rua
a Humanidade constrangida
a desumanizar-se!
Mas não era o que andava já a fazer?

A Humanidade
parada, confinada, em quarentena
a perguntar-se a si mesma:
40 dias? E agora, fazemos o quê?

Sem as obrigações a constranger
sem os objetivos por atingir
sem os horários e os prazos por cumprir
sem os patrõezinhos a quem se submeter
sem as viagens de negócios por agendar
sem lucros a registar custe o que custar

as pessoas começaram a fazer
o que realmente gostam de fazer
o que realmente sabem fazer
o que realmente deviam sempre fazer
tocar piano, cantar ópera, construir um armário
pintar um quadro, desenhar uma BD
ou inventaram porvires utópicos
para fecundar amanhãs melhores
ou reaprenderam o interesse superior
da preguiça e do ócio
ou começaram a escrever um livro, poemas
a compor músicas, canções, hinos
a esculpir madeira, a escultar barro
a costurar a sua própria roupa
voltaram a cozer pão em casa
aprenderam a falar swahili e inuita, suíço alemão
fizeram nascer um quintal num parapeito de janela
a plantar tomates-cereja e manjericão em vaso
e o canto de relva atrás de casa é agora uma horta
começaram a cultivar o seu próprio jardim
a brincar com os filhos, descobrindo que aprenderam
a falar inglês sozinhos com o tablet
“O meu filho fala inglês? Onde estava eu?”
e como nos piores anos
das piores épocas do passado
que julgávamos nunca mais
voltarem às ruas da Europa
as pessoas voltaram a deixar
cestos de comida suspensos das janelas
excedentes de primeira necessidade
no átrio dos supermercados
para os pobres: “Se tem ponha
se não tem, pode levar!”
a solidariedade é tão natural e fácil
como é que podemos ter esquecido?
A Humanidade a tentar lembrar-se de quem é?

As pessoas começaram a ver o mundo da janela
e o mundo pareceu-lhes bem diferente
mas na verdade o mundo continuava
tão belo como sempre foi.
A Humanidade a estranhar-se a si mesmo!

As pessoas começaram a bater palmas
aos enfermeiros, aos médicos, aos farmacêuticos,
aos carteiros, aos camionistas, aos motoristas
às empregadas de limpeza, aos homens do lixo
os empregados dos supermercados
e das estações de serviço
começaram a agradecer quem ignoravam
com soberba quinze dias antes
e começaram a falar com os vizinhos
em quem nunca tinham reparado.
A Humanidade a reabituar-se a si mesma!

Agora, namora-se à janela
como antigamente
fala-se com a vizinha
de soleira para soleira
de postigo para postigo
dá-se cursos de ioga
e concertos pela internet
aulas de cozinha e de guitarra por skype
cantam-se serenatas por viber
com o spotify e o shazam como orquestras de bolso
janta-se em facetime olhos nos olhos
e a distância aproxima
aqueles que muito se faltam.

À noite um DJ improvisa uma roof-party
desde de um dos terraços do bairro
a vizinha do 5° andar pendura a bola espelhada
no prego da gaiola do piriquito
e projetores multicolores iluminam
a noite, as ruas e os prédios
mais do que nas semanas do Natal
esvanecendo as luzes urbanas amareladas
já de si matas, baças e mortas
as pessoas assomam às janelas
às marquises, aos varadins, às varandas
e dançam de sacadas escancaradas
bebem cocktails e aperitivos nas janelas
que eles próprios prepararam
brinda-se de prédio para prédio
as cidades bailam, o mundo sobrevive.
A Humanidade a mudar?

E a economia?
A economia periclita
só porque as pessoas de repente
cortaram no supérfluo
e compram apenas o essencial.
Afinal quem precisa de quem?

JLC07042020
(Foto: Pixabay)

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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