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Uma leitura do conto “Os Cimos” de Guimarães Rosa

O título do conto de Guimarães Rosa por si só anuncia o ápice de um sentimento. O menino que protagoniza a história não tem nome, portanto qualquer leitor poderia estar ali representado. Indo mais além, diríamos que quando o autor deixa de nomear o personagem, intencionalmente ele quer estabelecer uma intimidade maior entre leitor e obra. Uma relação mais estreita entre dois mundos: o fictício e o real.

Sabemos que ao ouvir ou ler uma história, assistir a um filme, observar uma pintura, fotografia ou outro tipo de obra artística, através da nossa percepção, do nosso repertório, ela acaba alterada. Interferimos nela, nos apropriamos dela. Nosso sentido, quando desperto através de uma expressão artística que nos envolve, passa a dialogar com ela. Em Os Cimos, o universo infantil apresenta-se intenso, em meio a descobertas, sobretudo em relação à ideia da morte, pois a tristeza que ronda a mente do menino pela possibilidade de perda da mãe, que se encontra enferma, é angustiante, desesperadora.

É admirável a maneira com que Guimarães Rosa se apossa da palavra, fazendo com que tenhamos pleno envolvimento por ela. “Entremeio, o Tio, recebido um telegrama, não podia deixar de mostrar a cara apreensiva – o envelhecimento da esperança.” (Rosa, João Guimarães – Os Cimos – Primeiras estórias, p. 174). “O envelhecimento da esperança” é uma afirmação abstrata e reflexiva. O que seria o envelhecimento da esperança? Isto nos levaria, num primeiro momento, a pensar numa total falta de esperança. Todavia, seria razoável imaginar também um fio de esperança ainda existente, pouca, tênue, mas palpável.

Apesar de toda angústia sofrida pelo menino, ele ainda sonha. O tucano lhe aparece como uma velha esperança. O seu voo é leve, suave, assim como o seu sonho. Ele aparece sempre pela manhã, quando o sol nasce. A cena remonta ao signo do recomeço. O recomeço pode ser amedrontador, tumultuado, arriscado. Mas é acompanhado do suave voo da vontade e da luz da esperança. Por vezes, o menino se sente culpado por não ter ficado o tempo todo com a mãe. “Soubesse que um dia a Mãe tinha de adoecer, então teria ficado sempre junto dela, espiando para ela, com força…” (Rosa, Guimarães – Os Cimos – Primeiras estórias, p. 169). É a visão poética de Rosa ao interpretar o mundo real, visão que acrescenta uma significação contemplativa, intensa, absoluta. O sentimento de culpa se apossa do menino. Entretanto, o deslumbramento pelo tucano devolve-lhe o sonho, assim como o mundo real.

Vivemos a angústia, o medo, a culpa, a esperança, o sonho. Tudo de maneira contemplativa, intensa ou absoluta. De todas as práticas de que podemos valer-nos para refazer o real, com a ajuda da imaginação, a que aqui nos ocupa é literária, isto é, a reconstrução do mundo pelas palavras. Nas histórias inventadas podemos, eventualmente, encontrar um mundo preferível àquele em que vivemos; em certos poemas podemos encontrar os dados do real harmonizados de modo mais satisfatório.” (Moisés, Leyla Perrone-; As Flores da escrivaninha; p. 104). Os desafios da vida começam já na infância. O jogo dos sentimentos e emoções se ajustam e se contrapõem a todo instante. É necessário o envolvimento com o lúdico para prosseguir no sonho que a realidade da vida tenta arrebatar. O tucano parece ter aparecido na história num simbolismo premonitório. O tio recebe um telegrama informando que a mãe estava curada. O retorno para casa, então, é feliz para aquele menino, exceto a perda do macaquinho de brinquedo que ele costumava guardar no bolso. E parece ter funcionado como um talismã. O retorno é acompanhado da saudade. O menino tenta reencontrar o tucano entre as árvores. Porém, talvez, tanto o tucano quanto o macaquinho estejam num lugar muito especial, ou seja, na memória, na imaginação, onde somente o menino poderá alcançá-los.

Por fim, após a leitura da bela narrativa de Guimarães Rosa, fomos levados às lúcidas e oportunas palavras de Antonio Candido, para quem “A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que esses a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo.” (Candido, Antonio; Literatura e Sociedade; p. 74).

Bibliografia

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978.

MOISÉS, Leyla Perrone. Flores da escrivaninha, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

ROSA, Guimarães. Primeiras estórias, Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.

Sobre o autor do artigo: Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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