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Um conto de Natal (conclusão)

Foi de facto uma noite muito especial. À volta de uma mesa farta, uma família feliz.

Uma tragédia é sempre uma tragédia. A ela está associado o pânico, o medo, a dor e a ansiedade. Mas a tragédia tem também, por muito contraditório que possa soar, o poder de unir, de trazer as pessoas juntas, para que juntas possam atenuar a dor, e suportá-la ao mesmo tempo.

Em muitos casos uma tragédia consegue unir uma população inteira, independentemente das diferenças e desavenças entre cada elemento dessa população, e juntos, unidos por um mesmo sentimento de luta e resistência, de entreajuda e sobrevivência, mas acima de tudo, dor, dão as mãos para que juntos apanhem os bocados que ainda sobram e que a tragédia deixou espalhados num rastro de destruição. E quando a tragédia atinge uma família, então repentinamente o longe se faz mais perto, os obstáculos são soluções, e uma vez mais a tragédia nos seus danos colaterais, une a família.

Será prematuro afirmar que havia uma tragédia só porque o senhor Barros a dois dias do Natal desapareceu sem deixar rastro. Mas o facto por si só, temendo-se sempre o pior e esperançados no melhor, trouxe a família toda junta em Castro de Avelãs.

Os rapazes apanharam o primeiro avião que lhes foi possível, logo às primeiras horas da manhã do dia 24 de Dezembro, e as raparigas, viajando de carro, uma desde Santana de Cambas e a outra de Lisboa, saíram de casa ainda na madrugada desse mesmo dia. Os rapazes foram os primeiros a chegar, muito embora viajassem de bem mais longe, mas isso devia-se aos dois tipos de veículos utilizados para esse fim, e às suas tecnologias que a um permite fazer bem mais longas distâncias em muito menos tempo que o outro.

Miguel Barros, João e Pedro saíram do aeroporto de Manchester por volta das 7 da manhã e por volta das 9 ou pouco mais ou menos estavam no Porto onde tinham já carro alugado para sem mais demoras saírem de partida para a pequena aldeia de Castro de Avelãs, em Bragança. Uma viagem que lhes demoraria quase o mesmo tempo que demorou a chegar de Inglaterra a Portugal.

As raparigas acabariam por chegar pouco tempo depois, ou seja, logo ao início da tarde.

Houve um longo e prolongado abraço de saudades entre eles, mas esse abraço foi mais apertado e demorado ainda, não só porque carregava saudade com ele, mas mais porque o medo e a ansiedade de uma eminente tragédia a querer bater à porta a qualquer momento se havia instalado nos seus corações, e isso percebia-se pelo ar quase cerimonial com que se cumprimentavam, o que contrastava com a alegria com que se juntavam em outras ocasiões.

Durante toda a tarde até ao cair da noite os irmãos e cunhados palmilharam a aldeia de lés a lés, conversaram com os habitantes, correram os montes sobranceiros à pacatez da aldeia, mas foi debalde.

As raparigas ficaram em casa com a mãe e com os filhos que também acompanharam os pais nesta visita forçada à aldeia e também os miúdos estavam preocupadíssimos com o avô.

Quanto a Dona Ermelinda Barros é que não se sabe explicar como ou porquê, mas um misto de despreocupação e tranquilidade fazia com que, de toda a família fosse ela a única a manter a calma nesta situação. Quando um casal vive tantos anos juntos, construindo uma família e uma vida, sabe-se mais acerca um do outro do que deles mesmos individualmente. A Dona Ermelinda Barros sabia que havia algo de misterioso no súbito desaparecimento do marido. E isso talvez não fosse tão mau como estava a parecer.

Entretanto a noite caiu sobre a aldeia.

As famílias começavam-se agora a juntar no aconchego dos seus lares para a noite de consoada.

Há um relógio de parede, na sala, que preenche os momentos mais amenos num monótono tiquetaque que mais se faz ouvir nos prolongados silêncios entre as conversas dos irmãos Barros.

Depois das muitas perguntas sem resposta, a conversa aos poucos foi-se desviando para as memórias do passado. Lembraram-se outros Natais de então. O que se fez nessas noites mágicas, o que se disse, o que se sentiu, principalmente na época em que eram todos umas crianças.

A irmã mais velha lembrou então uma enorme cabana que o senhor Barros havia construído num dos pontos mais secretos da montanha sobranceira à aldeia. Catarina lembrava-se bem dessa cabana e dos bons momentos que la passou em criança. O pai chamava-lhe o “nosso esconderijo perfeito” e ela, bem como os irmãos, pequenitos nessa altura, passavam la tardes que pareciam imensas, tantas eram as fantasias criadas dentro e em torno da cabana. Passaram-se la também dois Natais, os mais mágicos de sempre.

Os irmãos tinham uma vaga ideia acerca da dita cabana pois que foi usada durante os primeiros anos das suas vidas, mas depois, por circunstâncias que são sempre difíceis de prever, a vida foi arranjando uma maneira de os desviar da cabana, até que pouco a pouco as memórias dos tempos la passados, embora não se tivessem esfumado, ficaram de certa maneira adormecidas. Mas à medida que Catarina e Bélita recordavam esses tempos em que elas eram as princesas do imaginário palácio onde reinavam, as memórias foram estremecendo sempre que as palavras rebatiam no cérebro, e aos poucos foram acordando.

Sim, os rapazes começaram a viver as memórias há tanto tempo adormecidas, desses tempos mágicos, muito embora há medida que as memórias se tornavam claras, fossem lembrando que nesse reino das princesas, eles eram, por serem os mais novos, os seus vassalos. Mas como eram bem tratados não tinham ponta de ressentimento que se lhes pegasse.

Foi à volta dessa conversa de outros tempos que subitamente João Barros tirou do bolso a carta que recebera do pai e que continha o poema e voltou a relê-lo. Leu e releu mais do que uma vez enquanto a testa ia franzindo num sinal de que não estava apenas a ler, mas também a pensar. A determinado momento, quase como se se tivesse esquecido que se encontrava na sala com o resto da família, leu em voz alta uma parte do poema,

Do que queria tudo se fez

Como um sonho tornado real,

Mas falta-me uma última vez

Contar-vos mais histórias, na noite de Natal.

As vozes dos irmãos e da mãe foram-se amortecendo à medida que ele recitava essa parte do poema, como se estivesse a falar consigo mesmo. Depois fez-se um silêncio de alguns segundos, minutos talvez, ninguém sabe precisar bem, e Pedro, o mais novo dos irmãos, e curiosamente o que menos se lembrava das memórias que os irmãos partilhavam dos tempos em que ele era apenas um bebé a procurar equilíbrio enquanto dava os seus primeiros passos, repisou as duas últimas frases da estrofe.

“Mas falta-me uma última vez

Contar-vos mais histórias, na noite de Natal.”

Houve novo breve silêncio, mas desta vez acompanhado de um enorme barulho interior que começava numa espécie de formigueiro na barriga, e que ia ebulindo até ao peito e às faces, quase rebentando numa explosão de esperança, alegria, alívio e vontade de rir até não poder mais, muito embora um outro sentimento de quase arrelia e uma espécie de fúria andasse por ali misturando-se com todos os outros sentimentos só para os confundir.

Houve tempo para que Miguel Barros clamasse.

“A vida é cheia de memórias.

Às vezes um pesado fardo,

Mas ainda é das nossas histórias

As melhores memórias que guardo.

Pois claro. A cabana, as histórias na noite de Natal, as memórias e as saudades.

Senhor Barros, senhor Barros…você…!

Repentinamente todos correram para o bengaleiro, enfiaram-se casacos, cachecóis, luvas e esperança, muita esperança.

Estava uma noite fria e todos sabiam que havia um caminho a percorrer, muito embora ninguém tivesse certezas absolutas do trilho que os levasse à cabana onde em outros tempos se passaram momentos únicos construindo-se memórias que o futuro agora presente clama revivê-las uma “ultima vez.” “Ainda é das nossas histórias as melhores memórias que guardo”

Catarina Barros seguia na frente do grupo com uma lanterna que lhes iluminava o caminho.

Era tempo para gingar entre a concentração do momento e as memórias do passado. O penedo que ficava sempre do lado direito, no caminho secreto para a cabana. Ali virariam à esquerda para descerem uma pequena ladeira, atravessarem um descampado amplamente iluminado pelo luar, apesar da noite fria que se fazia sentir. Depois foi mergulhar uma vez mais na floresta mesmo entre os dois enormes pinheiros que se destacavam entre todos os outros, contornar um arbustal sempre à direita, subir uma pequena encosta e chegados ao topo, ao fundo do terreno, quase camuflada pelas árvores que se entrepunham entre eles, a cabana. Entre os pinheiros destacava-se uma espécie de feixe de luz que emanava a partir da cabana.

Desde o topo da encosta até à cabana o tempo pareceu encurtar quase como que por magia, tal era a pressa, apesar da ansiedade, de la chegar. Os irmãos adiantaram o passo e mais ligeiros pois as raparigas pacientemente amparavam a mãe guiando-a segura entre as discrepâncias do terreno e da sua escassa luminosidade, e foram os primeiros a chegar.

Abriram a porta abruptamente e ainda ofegantes pela corrida deixaram-se estar no seu limiar olhando para dentro quase boquiabertos.

Era uma cabana grande como já se disse no decorrer desta narrativa, e a meio da cabana estava uma mesa posta com tudo o que é preciso para uma ceia de Natal. A um canto da cabana um pinheirinho devidamente decorado com luzes e enfeites e mesmo ao lado uma lareira devidamente protegida de qualquer perigo de incêndio. Ao lado da lareira, confortavelmente recostado numa cadeira de encosto, com um livro de José Saramago, estava o senhor Barros, com o ar mais tranquilo e satisfeito de sempre. Perante a estupefação dos filhos, calmamente disse…

“Porque vos demorou tanto tempo?”

Os miúdos abriram caminho entre os tios, que ainda incrédulos não haviam arranjado palavras, ou pelo menos forças para as exprimir, e correram em direção do avô que os recebeu de braços abertos.

As raparigas surgiram logo de seguida.

“Isso faz-se paizinho? Já imaginou o susto que nos pregou? E a mãezinha, acha que ela merecia este susto com esta idade…?”

“A tua mãe sabe bem que eu não vou para lado nenhum assim sem mais nem menos. Tem de haver uma razão muito forte para que eu a deixe ficar por alguns momentos para trás. E sim, a mãezinha merece isto. Nós merecemos isto. Todos. Estamos numa idade em que cada ano é uma contagem decrescente. E depois…vocês andam tão ocupados todos os anos que não vejo outra maneira de vos juntar a todos a não ser levar-vos a crer que aconteceu uma tragédia, ou a iminência disso.”

Todos estavam um pouco confusos com toda aquela situação. Irritados, zangados porque pensaram o pior, mas ao mesmo tempo aliviados e agradecidos porque nada de mal havia acontecido. E muito, mas muito depressa convencidos de que afinal o que o senhor Barros fez não era mais nem menos do que mais uma das suas lições para com toda a família de que o tempo para certas coisas pode não esperar, e que com um pouco de esforço talvez não seja tão impossível assim dar prioridade ao que mais importa, a convivência, a amizade e o amor uns com os outros, enquanto nos é dada essa oportunidade, que muitas vezes nos passa ao lado camuflada com os afazeres do dia a dia, que não se podem deixar de fazer, mas que não são tão prioritários assim.

Os filhos correram para o pai, abraçaram-no, e com as lágrimas a marejar-lhes os olhos, apertaram-no com força, gratos e indescritivelmente felizes por o terem ali junto deles naquela noite de Natal, uma noite tão especial, e de com ele, e com toda a família que, agora sim, mostrava sinais evidentes de que havia crescido, poderem passar esta noite todos juntos, em paz, harmonia e acima de tudo felicidade e amor mútuo.

Foi de facto uma noite muito especial. À volta de uma mesa farta, uma família feliz. Conversaram, riram, contaram histórias, recordaram outros tempos, e até, quase secretamente, nos olhos de alguns irmãos umas lágrimas muito bem disfarçadas, eram a prova de que era uma noite feliz, magica e única, porque nem só a tristeza faz verter lágrimas. A alegria também.

Fez-se um brinde.

Para todos um Santo, Fraterno e feliz Natal. E que não seja o último.

(Leia a primeira parte do conto de Natal aqui)

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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