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Testemunho de uma médica que fugiu do SNS

Sou especialista há quase quatro anos, depois de seis anos de curso de Medicina com aulas num hospital público e universitário, onde me mantive nos sete anos seguintes de formação de internato médico. Sempre sonhei permanecer no hospital que me viu graduar e mais tarde especializar. Gostava da equipa e conhecia os colegas, nesse hospital teria a oportunidade de estar em contacto com desafios constantes e mais próximo do “estado da arte”, poderia subespecializar-me numa área e aí procurar excelência, seria o local para desenvolver investigação e, não menos importante, teria a percepção de verdadeiro serviço às populações por via da função pública. Além disso, manter-me-ia na cidade onde havia organizado a minha vida pessoal e familiar. Como se percebe não citei honorários, enquanto motivação para me manter no SNS.

Procurei assim corresponder durante os anos de formação ao que considerava ser importante não apenas para a formação médica e pessoal, mas também para poder manter o vínculo com esse hospital onde sonhava permanecer. Estagiei em centros de referência no estrangeiro, participei em cursos e congressos vários e, durante o próprio internato, fiz algumas pós-graduações, algumas das quais em instituições muito prestigiadas internacionalmente. Ciente de que manter-me nesse hospital significaria dedicar-me também à Academia, candidatei-me ao Doutoramento, no qual fui admitida. E neste processo foram gastos milhares e milhares de euros por minha conta, em prol da formação e de um futuro no SNS, à semelhança do que acontece com a maioria dos médicos internos.

Findo o internato, apesar da total ausência de vagas para contratação, permaneci no hospital que me formou durante mais um ano e meio, por via da legislação que permitia ao interno em Doutoramento ali permanecer. Mas essa permanência não foi de forma alguma um favor do SNS, muito pelo contrário. Durante todo esse período os meus honorários eram os de médica interna, pesasse embora o trabalho enquanto especialista – mão de obra muito barata, portanto. E durante esse ano e meio, todo o encanto de permanecer no SNS morreu. Tudo funcionava mal. O período de consulta via-se preenchido com muito mais doentes do que o número previsto, o que, a par de desorganização de todo o sistema, se convertia em horas de espera desesperantes para os doentes e o constrangimento e vergonha por não conseguir dar-lhes resposta adequada e digna. Esta descrição repetia-se no serviço de urgência, onde 80% dos casos (não exagero!) não deveria ali chegar, pois seriam situações para acompanhamento nos Cuidados de Saúde Primários. Acrescia também a percepção de que não era possível proporcionar cuidados atempados e apropriados: solicitava uma ressonância magnética que demorava nove meses a um ano a realizar, com consequências irreversíveis e perda de oportunidade para prestar o melhor tratamento dirigido e oportuno. No que respeitava às cirurgias e a natural vontade de ganhar prática cirúrgica, aprender e poder proporcionar cada vez mais os melhores tratamentos, o cenário não era melhor. Tinha frequentemente apenas uma manhã de bloco operatório disponível por mês para os procedimentos mais diferenciados e orientados para a subespecialização, o que é sempre muito frustrante para qualquer cirurgião. Tal devia-se a vários factores, entre os quais ausência de recursos humanos para formar equipas de Anestesia e Enfermagem, para ocupar todas as salas operatórias disponíveis no hospital, e greves de enfermagem e técnicos de diagnóstico frequentes. Mas o mais penoso eram efectivamente as incontáveis horas de urgência, com fins-de-semana e feriados ocupados, que me tolhiam a liberdade a cada mês que passava. Foram muitas as ausências em várias festividades familiares. E foi precisamente no seguimento de horas dedicadas à urgência que percebi que não via a família. Prevendo-se a manutenção da situação precária, acrescida de todas as circunstâncias adversas no SNS, e na ausência de qualquer negociação possível em relação a essas mesmas condições, decidi abandonar o SNS. E, assim, vi-me obrigada a abdicar do sonho de uma vida e para a vida, lançando-me no desconhecido da prática privada, com todos os riscos associados, de quem não tinha qualquer rede ou desempenhava, na altura, funções fora do SNS.

Se recebi algum contacto telefónico, por carta ou outra via por parte da Administração Hospitalar, depois de entregar a carta de demissão? Não.

Ao sair do SNS encontrei propostas aliciantes, com possibilidade diferenciação profissional e de prestar atendimento de forma digna, com melhores rendimentos, mais tempo para a vida pessoal e familiar e com melhoria substancial da qualidade de vida. Se pretendo voltar ao SNS? Quem sabe, no futuro, com outras condições. O meu coração ficou no SNS, infelizmente quem o governa parece não ter nele o coração.

Joana Bento Rodrigues

Médica

Membro do Conselho Consultivo da TEM/CDS

A autora não reconhece o AO 1990.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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