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Tendências da língua portuguesa: as inócuas e as iníquas

A situação da empresa está a «detiorar-se», o que prejudica a sua «competividade».

Há quem se arrepie perante este tipo de «erros», que refletem a tendencial simplificação de palavras de pronúncia difícil. Porém, a «erosão» das palavras pelo uso é um fenómeno típico na evolução das línguas. Devemos-lhe, por exemplo, a substituição de «general» por «geral» (note-se a persistência de «generalidade», «genérico» e outras palavras do mesmo étimo mas de uso menos comum e, portanto, menos «desgastáveis»).

E, quanto à «amoldação» das palavras de acordo com a queda predominante na língua, cito perguntar, que, talvez ainda não há cem anos, começou por ser uma perversão de preguntar (a forma «correta») mas hoje é a forma-padrão (note-se que em espanhol se diz, pelo menos ainda, preguntar). Poderia também citar o latim merula, que em espanhol deu mirlo, em francês merle, em catalão merla, em romeno mierla, em italiano e português do Alentejo merlo (em todos estes casos, longe de exaustivos, mantém-se a posição relativa das consoantes r e l), mas em português-padrão, por provável erro ocorrido algures na evolução da língua, deu melro (inversão da dita posição relativa). Ou citar o verbo atazanar, uma deturpação de atanazar, tão incaracterística que dificilmente se nota já a sua ligação ao étimo tenaz.

E, obviamente, o fenómeno não é exclusivo do português: dizemos, «corretamente», crocodilo, tão «corretamente» como os ingleses dizem crocodile, os franceses crocodile, os alemães Krokodil, os gregos κροκόδειλος ou os russos крокодил, mas os espanhóis e os italianos enveredaram pelas formas «erradas» cocodrilo e coccodrillo.

Nesta tendência, não há deturpação de sentido, não há aberração sintática — há apenas facilitação da pronúncia, segundo o pendor típico de cada língua. Se, portanto, um dia acordarmos com a avalização de «palavrões» como detiorar ou competividade, estaremos, em minha opinião, perante o triunfo de uma tendência inócua.

***

Atente-se agora nas seguintes frases:

Depois de chocar com o rochedo, o navio virou.

Ando à procura do contínuo, mas ele de vez em quando evapora.

O conselho de ministros reuniu ontem.

Exemplifico com elas uma outra tendência, crescentemente divulgada pelos meios de comunicação social em Portugal e que aparenta consolidar-se cada vez mais nas jovens gerações. Consiste em substituir verbos reflexos por formas intransitivas([i]).

Comecemos pelo primeiro exemplo:

Uma coisa é virar; outra, substancialmente diferente, é virar-se.

Dizer «o navio virou» implica acrescentar «para a esquerda», «para a direita», «para cima», «para baixo» ou para qualquer outra direção; ou talvez «virar o rochedo com o qual chocou»: nesta segunda aceção, trata-se de um verbo transitivo, um verbo que pede complemento direto (virar o quê? o rochedo; fazê-lo dar uma volta sobre si mesmo).

Ora, na verdade, o que se pretende dizer é que o navio se virou (verbo reflexo, a indicar que o sujeito sofre a ação praticada por ele mesmo).

No segundo exemplo, a substituição é até absurda, porque «evaporar» nunca pode ser um verbo intransitivo. Exige sempre que se declare o quê (esse quê pode ser o próprio sujeito que pratica a ação, caso em que o verbo é reflexo). Por exemplo: «o sol evaporou a poça de água, porque o calor evapora os líquidos» (o sol evaporou o quê? a poça de água; o calor evapora o quê? os líquidos). Alternativamente: «a poça de água evaporou-se com o sol, porque os líquidos se evaporam com o calor» (a poça de água evaporou o quê? a si mesma; os líquidos evaporam o quê? a si mesmos).

Outra ocorrência conspícua nos nossos órgãos informativos:

«O conselho de ministros reuniu ontem».

Ora, podemos dizer que um pastor reuniu o seu rebanho; mas um conselho de ministros ou se reuniu ou então reuniu, por exemplo, diversos elementos dos gabinetes. Reunir é um verbo transitivo: exige sempre que se diga o quê (podendo esse quê ser o próprio sujeito, caso em que o verbo se torna reflexo).

Desafortunadamente, exemplos como os que citei estão muito longe de ser raros.

A origem desta tendência é discutível. Poderá dever-se à lei do menor esforço, à propensão para simplificar (talvez sintomaticamente, é desde há muito mais tempo manifesta no Brasil e nos países africanos lusófonos). A propensão para simplificar não seria, em si, necessariamente negativa… se não prejudicasse a clareza e a elegância do falar.

Mas há também quem acuse a crescente penetração acrítica do inglês nos grupos mais instruídos, que têm maior influência na evolução da língua (com efeito, os verbos reflexos são relativamente raros em inglês: the ship capsized; the water evaporates; the cabinet met).

Seja como for, a verdade é que se trata de uma tendência no sentido do empobrecimento da língua e da deturpação do significado das palavras.

Portanto, só pode ser classificada de iníqua.

Declaro, sem rebuços, que «a situação começa a detiorar-se» me parece menos inquietante do que «a situação começa a deteriorar».

([i]) Entende-se por transitivo o verbo que exige que se pergunte ao sujeito «o quê?». Por exemplo, são transitivos os verbos das frases «o fogo queimou» (porque perguntaríamos de imediato «o fogo queimou o quê?»), «o operário pintou» (porque perguntaríamos de imediato «o operário pintou o quê?»). Quando aquele «quê» é o próprio sujeito, o verbo transitivo é reflexo. Por exemplo, «o condutor feriu»; se perguntássemos «feriu o quê?» e a resposta fosse «feriu a si próprio», a forma correta da frase seria «o condutor feriu-se» (aquilo que feriu o condutor foi o solavanco). Outro exemplo: «o carro avariou»; se perguntássemos «avariou o quê?» e a resposta fosse «avariou a si próprio», a forma correta da frase seria «o carro avariou‑se» (aquilo que avariou o carro foi a derrapagem).

Intransitivo é o verbo que não exige idêntica pergunta ao sujeito (ou seja, fica-se por ali, não carecendo a frase de se prolongar, de transitar). Por exemplo: «o menino caiu» (porque não faria sentido perguntar «o menino caiu o quê?»); «o cão ladrou» (porque não faria sentido perguntar «o cão ladrou o quê?»).

Nesta aceção, há verbos que podem ser circunstancialmente transitivos ou intransitivos. Por exemplo, na frase «há bocado comi», pode fazer sentido perguntar «há bocado comeste o quê?» ou simplesmente entender a mensagem como «ingeri alimentos», sem especificar quais.

Jorge Madeira Mendes

([1]) Entende-se por transitivo o verbo que exige que se pergunte ao sujeito «o quê?». Por exemplo, são transitivos os verbos das frases «o fogo queimou» (porque perguntaríamos de imediato «o fogo queimou o quê?»), «o operário pintou» (porque perguntaríamos de imediato «o operário pintou o quê?»). Quando aquele «quê» é o próprio sujeito, o verbo transitivo é reflexo. Por exemplo, «o condutor feriu»; se perguntássemos «feriu o quê?» e a resposta fosse «feriu a si próprio», a forma correta da frase seria «o condutor feriu-se» (aquilo que feriu o condutor foi o solavanco). Outro exemplo: «o carro avariou»; se perguntássemos «avariou o quê?» e a resposta fosse «avariou a si próprio», a forma correta da frase seria «o carro avariou‑se» (aquilo que avariou o carro foi a derrapagem).

Intransitivo é o verbo que não exige idêntica pergunta ao sujeito (ou seja, fica-se por ali, não carecendo a frase de se prolongar, de transitar). Por exemplo: «o menino caiu» (porque não faria sentido perguntar «o menino caiu o quê?»); «o cão ladrou» (porque não faria sentido perguntar «o cão ladrou o quê?»).

Nesta aceção, há verbos que podem ser circunstancialmente transitivos ou intransitivos. Por exemplo, na frase «há bocado comi», pode fazer sentido perguntar «há bocado comeste o quê?» ou simplesmente entender a mensagem como «ingeri alimentos», sem especificar quais.

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