De que está à procura ?

Colunistas

“Tempo extra” de  Paula Sá Carvalho

© dr

“O tempo que passa
E a parte que fica
São guias de viagem
Com muitas ilustrações”

“Tempo extra” da autora Paula Sã Carvalho é uma recolha de 10 contos. Uns mais extensos que outros, mas que na sua essência transportam os desafios, as complexidades, as dúvidas, os medos, as ânsias da cada ser humano.

É no género literário, conto, onde a autora Paula Sá Carvalho desenvolve os temas que a habitam intimamente; as suas preocupações literárias emergem da vontade de escrever sobre a relação do mundo com a humanidade e da humanidade ao mundo, as relações de poder, as injustiças, as revoltas, os medos, a sede de amor e liberdade.

A escrita de um conto é uma difícil aventura literária, é a mais nua de todas, sem roupagens, sem artifícios. Este género literário requer da parte do autor, objetividade, foco. Não pode haver desvios. O autor não se pode perder em exageradas descrições, demasiadas variações. O protagonista principal é o assunto de que o conto trata. E é desse assunto que a qualidade literária do conto depende, da forma e do modo como o autor o descreve e destaca.

Numa entrevista concedida há dias ao jornal de notícias, o escritor angolano Pepetela, afirmava o seguinte: “Não há história sem as pequenas histórias do quotidiano”. E “Tempo extra” obedece em profundidade a essa premissa. São narrativas e acontecimentos localizados num tempo e num espaço específico. E são, também, as tais pequenas histórias do quotidiano de que falava Pepetela.

Cada conto é antecedido de um poema em jeito de epígrafe, uma forma lírica de desvendar a ponta do véu que ainda cobre a narrativa. É através da beleza lírica do poema que se vislumbra o tema que o leitor vai encontrar dentro da história.

Apesar do título nos remeter para o conceito de tempo. O tempo extra que desejaríamos ter para amar e dizer/fazer o que ainda não foi dito/feito, ou ainda o tempo que se tem em demasia e se utiliza de uma forma errada. Extes contos espraiam-se no desenrolar de vários temas inerentes à condição humana. O primeiro conto está dividido em três partes “Há lobos na serra / Há lobos na cidade / Há lobos no meu corpo”, nele destaca-se a pobreza das aldeias numa época em que as crianças não tinham tempo para serem crianças e onde o conceito de trabalho infantil nem sequer existia.

“Eu ainda nem tinha entrado na adolescência quando ele morreu. Com a sua ausência definitiva fui obrigado a crescer, e do alto dos meus 10 anos, que até era um rapaz espigadote, mas longe de ser capaz de enfrentar tanto desaire, passei a ser o homem da família e a ter de assumir o que isso trazia como consequências.” p. 13

A dureza dos jovens rapazes na luta pela sobrevivência na cidade grande, “Lisboa era considerada uma cidade de novas oportunidades, mas comigo mostrou pouca generosidade.” p. 17

O tema e as questões inerentes à imigração, ao sentimento de pertença. A distância e a saudade. “O que doía mais eram as saudades da família. Por vezes, à noite, imerso no silêncio à espera do sono, pensava nas minhas filhas e em toda a infância que não partilhava com elas. Sentia-me muito só, de uma solidão assoada e persistente.” p. 21

Mas é sobretudo na metáfora dos “lobos” que o conto ganha complexidade e beleza literária. Os lobos são a representação na sua função mitológica do lado mais selvagem e livre da vida humana. Aquilo que perdemos e queremos a todo o custo reconquistar. O que nos atemoriza e protege, ao mesmo tempo. A presença do medo e da dor face ao desconhecido, do desamparo, da morte. “Um homem, se não está preparado para se despedir, deveria ter um tempo extra. Se podem prolongar tanta coisa porque não prolongam o fim? p. 9

O tema da morte e a dor da perda está, também, presente nos contos “Dá-me mais sopa mãe” e “Roupa lavada”. A intolerável dor da perda de um filho. É nos pequenos detalhes do quotidiano feminino que estas duas narrativas evoluem. No espaço da casa reservado à cozinha, na sala ou no quarto, na confeção da sopa, o na lavagem das roupas no tanque da casa. Rituais do dia-dia das mães e das mulheres a perpetuar a presença, os dias e um tempo. A fronteira do antes e depois. A vida e a morte, a presença e a ausência, a voz, o riso e de repente o a dor e o silêncio, o vazio.

“A loiça, continuei a lavá-la todos os dias; depois do almoço e depois do jantar. Só de ver os pratos todos empilhados – todos menos um – dava-me uma enorme vontade de chorar (…) menos um prato, menos um talher, menos um copo, menos uma tigela menos…só a saudade de ti estava a mais! Enchia-me o peito como um balão prestes a rebentar, mas que nunca rebentou. Melhor dizendo, nunca explodiu. Mas foi vertendo veneno a doses mínimas chorando de saudade os meus quotidianos, disfarçando tudo num presente encapuçado de rotinas. E o calendário sempre indiferente à minha dor.” p. 31

O tempo extra que nunca se deseja ter ou conhecer. O tempo da dor que que marca a ferro quente o coração de uma mãe e queima as horas e os dias sem complacência. No conto “Roupa lavada” é o tempo de uma mãe a lidar com perda do filho e com o profundo vazio e falta de sentido que esse acontecimento acarreta.

Fiz tantas tentativas para fechar a porta à dor que o meu coração ficou incapaz de expressar amor. Fiquei seca, imóvel nos sentimentos e nas emoções, sem conseguir manifestar o mínimo carinho pela minha querida família. Um dia, em que me levantei mais tarde e estava sozinha em casa, preparei uma mala com roupas e arrumei fotos e outras recordações em dois caixotes que encontrei na despensa. De seguida, fiz as camas, arrumei a loiça do pequeno almoço e, por fim, sentei-me a beber um café e a escrever duas cartas.” p.37

O que emerge destes contos, é a narrativa como pequenos fragmentos de acontecimentos que alteraram por completo o percurso de vida destas personagens. As ações desenrolam-se num tempo muito curto, e num espaço muito reduzido, o tempo de um dia, uma hora; na cozinha ou no quarto. Acontecimentos que, pela sua carga trágica, alteram o percurso dos personagens. Há uma dualidade de tempos, o antes e o depois dos acontecimentos, e o tempo extra no centro do drama.

Em “As aulas de inglês” e “O inverno na primavera” Paula Sá Carvalho explora a complexa temática do assédio sexual e da violação feita às mulheres.

No seguimento do movimento “mee too” e mais recentemente o caso Pelicot em França, muitas mulheres tem ganho coragem e revelam casos de assédio e violações perpetuadas por homens. Nestes dois contos a autora narra dois casos que demonstram o poder dos homens sobre as mulheres e a vantagem de serem senhores e donos da verdade numa sociedade caracterizada pela cultura do patriarcado.

No conto “As aulas de inglês” assistimos à vitimização do homem, onde a mulher é sempre a culpada e provocadora do que aconteceu. O homem é sempre a vítima a mulher a desestabilizadora, a sedutora.

“Repara só, isto a passar-se comigo, que me esforço por ser imparcial nas correções de todos os trabalhos que recebo, que até tapo os nomes para não identificar potenciais entusiasmos ou deceções. Eu, a ser acusado de discriminar uma aluna! Durante este episódio fiquei tão furioso que a despachei da sala. A partir desse dia, começou a sentar-se na fila da frente, usando um olhar de lince e um constante cruza e descruza de pernas para me destabilizar.” p. 68

Apesar desta recolha de contos se centrar nestas pequenas grandes dores da condição humana. De olhar para o mundo e para a sociedade sob uma lente realista sem recorrer a romantismos desnecessários e incoerentes, “Tempo extra” é também o tempo do recolhimento e da contemplação, da procura de um lugar de plenitude e de encontro, de amor e de afetos.

“Sei agora que a realidade é uma casa de afetos e, tudo aquilo em que acreditamos e amamos, está sempre connosco.” p. 86.

Esta resenha literária foca-se apenas em alguns contos deste livro. Fica o convite ao leitor para descobrir a totalidade da obra.

São Gonçalves

Poética edições 2024

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA