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O tempo dos amantes: aos jovens que se beijavam em Ghent

“… E agora estavam a separar-se, desgastados também eles pelas várias estratégias de que dispunha a vida para desgastar os amantes, pelas demasiadas viagens ou pela demasiada presença, pelo peso acumulado das mentiras e das inabilidades e das indelicadezas e dos erros, pelas coisas ditas antes de tempo e com palavras imoderadas ou inconvenientes ou pelas que, por ventura, por não encontrarem as palavras convenientes ou moderadas, nunca se disseram, ou desgastados também pela má memória, sim pela incapacidade de recordar o essencial e viver nele, para recordar o que outrora fez o outro feliz – quantos amantes sucumbiram a esse esquecimento negligente? – e pela incapacidade também de se anteciparem a tudo o que desgasta e deteriora tanto. Anteciparem-se (…) às coisas que não deveriam ser ditas e aos silêncios que deveriam ser evitados. (…)”

Juan Gabriel Vasquez, As Reputações, 2013*

 

Somos velhos. Ainda amantes, mas velhos. Já não nos beijamos longamente como aquele casal tão jovem que se beijava, enamorado, nas ruas da cidade que visitámos. Observas, eu desvio os olhos. Tu sente curiosidade, acho. Talvez saudade. Já nos beijámos assim, lembraste? Antes roubavas-me beijos até nos momentos menos apropriados. Sempre foste mais desse tipo de demonstração ou de urgência. E eu sempre gostei de o guardar para longe dos olhares. Por isso não olho. Posso sorrir. Pode ser prazenteiro – porque é poético, naïf, inesperado e até saudoso – mas é deles. E a verdade é que não nos vêem. Tal como a ponte (Pont Saint-Michel), o castelo (Château des Comtes), a catedral (Cathédrale Saint-Bavon), a igreja (Église Saint-Nicolas) o rio (Lys) e os seus cais (Graslei/ Quai aux Herbes), as centenas de pessoas que os rodeiam (onde nos incluímos) são somente paisagem. Todo este ruído – tanto ruído – do rumor da gente, do seu alvoroço e frenesim, não o ouvem, e mesmo que acotovelados pela multidão, sedenta da melhor fotografia, da melhor perspectiva, da melhor experiência, não o sentirão, tal como não sentem a chuva que nos chateia o dia. E ainda bem.

Beijam-se como se estivessem em casa ou num espaço etéreo. Longamente.

Olhei um instante confesso. Era impossível não olhar. Não era aquele beijo a saber a desejo, como se fizessem amor ali na rua por não terem tempo para esperar. Era um beijo diferente, de quem tem tempo – todo o tempo – para sentir o outro, para encontrar o outro e se encontrar a si mesmo nele. De olhos fechados. Ausentes do bulício. Sem gadgets. Sem outros. Entregues ali um ao outro, alma na alma, boca na boca. Com todo o tempo de quem tem 18 anos e a vida toda à espera. Vivendo o aqui e agora que é o que realmente interessa (não apenas quando se ama aos 18 anos, mas pela vida toda, embora comummente nos esqueçamos disso). Saboreando a felicidade sem mas, sem porquês, sem quesitos ou outras intranquilidades que disformam a pureza dos sentimentos.

Cruzamo-nos várias vezes e em todas encontrámo-los sempre a beijarem-se. Delicadamente. Ele magro e alto, ela em bicos de pés. E divergiam, de facto, daquela paisagem linda e romântica, mas completamente submersa em caos. Só eles estão ordem, com a natureza original deste lugar – senti.

Se os tivesses fotografado talvez pudéssemos ver agora as borboletas a voarem-lhes da barriga. E quem sabe se nos tivéssemos aproximado não ouviríamos, para além do bater descompassado dos seus corações, uma melodia suave e doce – que eles decerto ouviam – e que talvez nos levasse a dançar juntos, uma vez mais, à chuva e a recriar um tempo todo novo.

Tão inspirador vê-los, jovens e apaixonados. Quem lhes dera – quem nos dera – que este seu tempo nunca envelheça.

30 de Junho de 2017

Esch-sur-Alzette, Luxemburgo

*In Literatura Aqui, RTP2 3/01/2017

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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