
Recentemente, diversos meios de comunicação noticiaram que um míssil de fabrico norte-coreano, utilizado num ataque a Kiev, na Ucrânia, continha componentes eletrónicos de origem americana. A informação foi partilhada pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, como parte de uma análise mais ampla aos materiais utilizados nos ataques russos. Esta revelação provocou uma vaga de comentários, muitos deles superficiais e carregados de acusações infundadas, sugerindo que empresas norte-americanas ou até administrações políticas dos EUA teriam responsabilidade direta neste acontecimento. Nada poderia estar mais longe da realidade.
Em primeiro lugar, é fundamental compreender que a esmagadora maioria dos componentes eletrónicos encontrados em dispositivos militares são, na sua origem, produtos de uso civil. Microchips, sensores, condensadores e outros elementos são produzidos para um mercado vasto e diversificado que inclui telemóveis, computadores, automóveis, eletrodomésticos e sistemas industriais. A tecnologia moderna é profundamente baseada em componentes de “uso dual”, o que significa que podem ser aplicados tanto em produtos civis como militares. Portanto, não se pode assumir que o simples facto de existirem componentes de origem americana num míssil implique qualquer intenção deliberada ou negligência consciente por parte dos fabricantes.
Num mundo globalizado, com cadeias de abastecimento interconectadas, os produtos podem mudar de mãos diversas vezes antes de chegarem ao utilizador final. Um chip produzido nos Estados Unidos pode ser vendido a uma empresa em Taiwan, integrado num produto fabricado na China e, através de uma cadeia de reexportação ou mercado paralelo, acabar nas mãos de regimes sancionados como a Coreia do Norte. Com o volume gigantesco de transações comerciais diárias e a existência de intermediários em várias regiões da Ásia, muitas vezes é simplesmente impossível rastrear a totalidade do percurso de cada componente.
A própria estrutura do mercado asiático contribui para esta realidade. As relações comerciais entre os Estados Unidos e países asiáticos são intensas e dinâmicas, e o comércio intra-asiático é ainda mais vibrante. Produtos circulam livremente entre Japão, China, Taiwan, Coreia do Sul, Malásia, Vietname e muitos outros centros de produção e distribuição. Nestes ambientes, redes paralelas e mercados cinzentos proliferam. Empresas aparentemente respeitáveis podem, direta ou indiretamente, vender componentes a entidades que posteriormente os redistribuem para destinos proibidos.
Tentar travar este fenómeno através de uma “cooperação internacional” é, apesar de desejável em teoria, uma missão praticamente inglória na prática. A tecnologia, hoje em dia, é multi-pilarizada. Não existe uma única fonte de produção ou um único canal de distribuição. Mesmo que os EUA e os seus aliados ocidentais consigam implementar controles mais rígidos, a existência de polos alternativos de produção – como a China, Índia, Sudeste Asiático – garante que componentes semelhantes continuarão a ser produzidos e disponibilizados em larga escala.
Ademais, há que reconhecer a limitação das sanções. Por mais rigorosas que sejam as listas de controlo de exportação, existe sempre uma capacidade de contorno através de empresas fachada, transações indiretas e falsificação de documentação. Este tipo de redes não é um fenómeno novo; existe desde que há regulação comercial. A diferença é que, na era da alta tecnologia e do hipercomércio global, a velocidade e o volume de tais operações tornam o controlo muito mais difícil.
Portanto, é profundamente injusto e intelectualmente desonesto tentar atribuir responsabilidade direta a quem produz tecnologia de ponta. Tal como ninguém culpa o fabricante de um martelo pelo seu uso num crime, também não se deve culpar quem desenvolve componentes eletrónicos pelo uso indevido dos mesmos. A responsabilidade é, em primeira linha, de quem viola deliberadamente as normas internacionais e utiliza tecnologias para fins agressivos e ilegítimos.
Esta situação, em vez de ser motivo para acusações superficiais, deveria levar a uma reflexão mais profunda sobre a natureza do mundo em que vivemos. A interdependência global é uma realidade incontornável. A produção e a circulação de tecnologia não podem ser hermeticamente controladas sem comprometer a própria dinâmica de inovação e desenvolvimento económico que sustentam a nossa sociedade moderna.
A solução, se é que existe uma viável, não está em medidas simplistas ou em culpabilizações fáceis. Está na educação das sociedades, na construção de alianças verdadeiras baseadas na transparência e no reforço dos mecanismos de rastreamento tecnológico. Mesmo assim, será sempre uma batalha imperfeita.
Em conclusão, a existência de componentes americanos num míssil norte-coreano é, acima de tudo, um reflexo da complexidade do nosso tempo. Um tempo em que a tecnologia, o comércio e a política estão intrinsecamente entrelaçados e em que as respostas simples são, invariavelmente, insuficientes. A verdadeira responsabilidade não é de quem produz para o progresso, mas de quem desvirtua a inovação para fins de destruição. Esta é a distinção que devemos fazer, se quisermos ter um debate honesto e construtivo sobre o futuro que desejamos construir.
António Ricardo Miranda