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Tatiana Belinky: a memória que ensina

Tatiana Belinky dispensa qualquer apresentação. Seu nome é verdadeira legenda. Por quase sete décadas, ininterruptamente, brindou o público jovem e adulto com suas belas histórias, além das adaptações de textos clássicos para o teatro e a televisão. Publicou mais de cem livros e deixou primorosas traduções de autores russos para o português, assim como um sem número de artigos para a imprensa.  Nascida em São Petersburgo, Rússia, em 1919, faleceu em São Paulo, em 2013.

Pode nos contar um pouco de sua infância em São Petersburgo e em Riga.

Nasci em 18 de março de 1919. Minha mãe se chamava Rosa e era dentista.  Meu pai, Aron, que embora tenha começado o curso de psicologia, não chegou a concluí-lo. Ambos eram judeus. Mamãe era comunista convicta e mesmo grávida do primeiro filho foi a um comício do Trotsky e empurrada pela multidão, acabou por perdê-lo. Era tão ardorosamente comunista, que mesmo com a mudança de rumos da Revolução Russa, jamais conseguiu enxergar os erros que seus líderes cometeram. Já papai era um liberal, completamente diferente de mamãe. São Petersburgo tinha um clima péssimo, sempre muito frio, com temperaturas que chegavam a vinte graus abaixo de zero. Quando eu tinha pouco mais de um ano, meus pais decidiram voltar para Riga. Nossa vida era de uma família de classe média, mas antes da revolução meus avós eram ricos. Todos os anos, em julho, íamos para uma temporada de férias na praia, eu, papai, mamãe e meus dois irmãos, o Abram, que a gente chamava por Abracha, e o Benjamin.  O hábito da leitura era muito forte em nossa família e aos quatro anos eu já sabia ler.

Como se deu a chegada ao Brasil?

Cheguei ao Brasil em 29 de setembro de 1929, aos dez anos, após uma longa viagem de navio, que demorou três semanas e mesmo assim foi maravilhosa. Papai já tinha vindo para cá alguns meses antes. E aqui no Brasil a primeira coisa que me deslumbrou foi a banana. Costumo brincar que não deveria ser maçã, a fruta que existia no paraíso, mas sim a banana (risos). Antes do desembarque final em Santos, passamos alguns dias no Rio de Janeiro, numa pensão em Laranjeiras.  Quem apresentou a cidade de São Paulo para mim, mamãe e meus irmãos foi papai. Ao sairmos da Estação da Luz, pegamos um carro que passou por alguns lugares muito bonitos da cidade, como o Theatro Municipal, o Viaduto do Chá e o prédio da Light. Fomos então viver numa pensão da Rua Jaguaribe, até que meus pais pudessem alugar uma casa só para nós, onde também funcionava o consultório de minha mãe.

E como foi aprender português?

Ao chegar, eu falava russo, alemão, letão e iídiche e é sabido que crianças aprendem novas línguas com muito mais facilidade que os adultos. Fui estudar numa escola alemã com meu irmão Abram, mas ficamos pouco tempo lá, pois era comum os professores baterem nas crianças e isso horrorizou os meus pais, que nos matricularam no Mackenzie, com classes mistas e um ambiente muito mais democrático, cuja biblioteca me encantou, apesar de não permitirem o empréstimo de alguns livros para crianças. Mas meu pai resolveu o problema, escrevendo um bilhete para a bibliotecária, no qual me autorizava a pegar qualquer livro do acervo, como os de Júlio Verne, que consideravam próprios apenas para meninos. No Mackenzie, uma de minhas colegas mais próximas era a Gilberta Autran, irmã do ator Paulo Autran. Os dois iam sempre à minha casa, para brincarmos de teatro. O palco era montado na garagem, com alguns panos velhos e as cadeiras do lado de fora. A plateia eram os nossos pais e alguns vizinhos. Papai era nosso diretor. Chegamos até a nos apresentar no auditório do Clube Escandinavo, que funcionava na Rua Nestor Pestana. No Mackenzie, eu passei oito anos e saí de lá com o diploma de secretária bilíngüe.

Depois de formada no Mackenzie, o que aconteceu?

Fui cursar filosofia no Mosteiro de São Bento e consegui um emprego como secretária num frigorífico americano, onde fiquei pouco, pois embora ganhasse bem, eu achava tudo muito chato. Saí de lá e fui trabalhar num escritório de advocacia. O tal escritório era de faz-de-conta, pois o advogado nada fazia. Foi nessa época que eu conheci o Júlio, no casamento da irmã de uma antiga colega do Mackenzie. Após a cerimônia na sinagoga, pois os noivos eram judeus, fui com a Gilberta para o palacete em que os pais da noiva moravam, onde houve uma grande festa para mais de duzentas pessoas. Um amigo meu, chamado Alexandre, que também estava na festa, foi quem me apresentou o Júlio, que eu já tinha visto na sinagoga e achado muito bonito. Ele estava embaixo de uma das mesas, com uma garrafa de champanhe ao lado, tão alto que não sei como não derrubou a mesa (risos). Após sermos apresentados, ele virou-se para mim com uma voz bem pastosa e disse: “Tatiana, você quer se casar comigo?”(risos).

Então o namoro com o Júlio Gouveia começou assim?

Na verdade, não, pois com o fim da festa, voltei para casa e não mais o vi por algum tempo, até que uma noite, quando saí da faculdade, estava com uma amiga na Praça do Patriarca, esperando o ônibus para voltar para casa e dei de cara com o moço bonito que havia me pedido em casamento debaixo da mesa (risos). Ele nos convidou para irmos ao cinema. Eu respondi que não iria ao cinema a três e ele, bem humorado, sugeriu que jogássemos cara ou coroa para ver quem o acompanharia. Acabei ganhando e fomos ver um filme com a Shirley Temple. No dia seguinte, ele me mandou lindas flores e um bilhete com um acróstico a partir de meu nome, do qual até hoje me lembro nitidamente:

Trazes no peito um sonho de ventura

 Amável sonho que te embala a vida

Tornando-a suave e menos mal-sofrida

Irmão do seu sequioso de ternura

Arde outro  sonho dentro do meu peito

Não te parece assim bela medida

Amarmo-nos os dois num só proveito

E seis meses depois, estávamos casados.

A partir do casamento com Júlio Gouveia que surgiu seu grupo de teatro?

Meses após meu casamento, papai morreu num acidente aéreo. Foi um dos momentos mais tristes de minha vida, fazendo com que eu caísse numa depressão que durou três anos. Assumi o trabalho de representação na área de celulose que papai fazia, embora estivesse muito triste. Júlio, recém-formado em medicina, começou a clinicar e pouco depois, nasceu Ricardo, meu primeiro filho. Fizemos mais adiante um acordo com a companhia aérea pela qual papai viajava quando morreu e isso deu ao menos um alívio financeiro para a família. Começamos, a partir daí, a levar mais a sério o trabalho com o TESP (Teatro Experimental de São Paulo), cuja sede passou a ser numa casa no bairro da Liberdade, recebida por herança pelo Júlio, pouco antes. O TESP era uma família, um trabalho apaixonante.

Foi com o elenco do TESP que começou o Sítio do Picapau Amarelo na televisão?

Primeiro eu preciso contar minha história em relação ao Monteiro Lobato, uma prova nítida de que eu na verdade nunca procurei nada na vida, as coisas é que sempre me procuraram. Uma noite tocou nosso telefone e do outro lado da linha uma voz masculina meio seca me perguntou se era da casa do Júlio Gouveia. Eu disse que sim e a voz masculina disse que era Monteiro Lobato e queria falar com ele, pois havia lido o artigo que Júlio tinha escrito sobre ele numa revista chamada Literatura e arte.  De início, achei que era alguém tentando me passar um trote. Imagine, Monteiro Lobato ligando para nossa casa! Lobato disse a Júlio que gostaria de visitá-lo, ainda naquela noite, e pouco depois estava em nossa casa. Assim que Júlio abriu a porta, Lobato virou-se para ele e disse: “Na tua idade eu tinha a tua cara”. Corri ligar para meu irmão Benjamin, que ainda era menino nessa época e fã do Lobato, como todos nós.  A emoção foi enorme, afinal, o primeiro texto de literatura brasileira que eu li foi Jeca Tatu, quando eu mal falava português. Infelizmente, Lobato morreu em 1948, pouco tempo depois de nos conhecer, mas chegamos a frequentar a casa dela. Foi ele quem me ensinou o respeito pela inteligência da criança, que me fez ver a facilidade que a criança tem para entender as coisas. E foi a esposa dele, D.Purezinha, quem nos deu autorização para adaptar o Sítio do Picapau Amarelo. Foi uma época de trabalho frenético. Os textos eram feitos num mimeógrafo, que era a melhor tecnologia da época. O Júlio deixou de clinicar para dirigir o programa, que era levado ao vivo para o ar. Ficamos na Tupi até 1965 e três anos depois a Bandeirantes nos chamou. Lá,  com o recurso do videoteipe, ficamos mais algum tempo, mas Júlio não se adaptou e acabou deixando definitivamente a televisão, voltando a clinicar.

E você, a que se dedicou a partir dali?

Eu recebi um convite para organizar o setor infanto-juvenil da Comissão Estadual de Teatro. Criei, inclusive, uma revista, que se chamava Teatro da juventude. Pouco depois, fui convidada pelo Boris Casoy  para fazer duas colunas semanais na Folha de S.Paulo, uma sobre teatro infantil e outra sobre literatura infantil. Dali eu fui para O Estado de S.Paulo e o Jornal  da Tarde. Virei jornalista, até com carteira da categoria. Em 1985, a editora Ática me encomendou um livro de contos, coisa na qual eu nunca havia pensado, mas respondi que mandaria uns quatro ou cinco para ver se eles gostavam.  Gostaram e eu acabei estreando literariamente com quatro livros logo de uma vez. E de lá para cá já são mais de 100 livros publicados, entre traduções, adaptações, poesia e prosa. Costumo dizer sempre que o livro é o único objeto maior por dentro que por fora, afinal, dentro dele cabem até mesmo os dinossauros, os castelos, países inteiros (risos).

Como é traduzir textos de outras línguas para o português ?

Minhas traduções foram quase sempre do russo e do alemão. Traduzi vários romances e peças de teatro, sobretudo do Tchecov, o mais querido de todos autores que já traduzi. Senão o maior, um dos maiores de todos os tempos. Dele traduzi, por exemplo, A Gaivota, O Urso, Os males do tabaco e A Senhora do Cachorrinho, além de alguns contos que adaptei para televisão. Tchecov não escreveu propriamente para crianças, mas sobre crianças. E também sobre bichos. Eu o li pela primeira vez ainda criança e me apaixonei por suas histórias bem contadas, que me faziam rir, chorar, ter medo ou raiva com muita força. Não faz muito tempo, eu li um artigo, no qual o autor afirmava que as obras russas ficam melhores quando traduzidas, opinião com a qual concordo. Poucos anos atrás, traduzi, a pedido do Iacov Hillel, uma peça chamada Querida Helena, de uma autora russa, Ludmilla Razoumovskaya. A tradução francesa era muito empolada, formal e como o tema eram alunos que se preparavam para entrar na universidade, isso não tinha cabimento. Optei então por uma linguagem coloquial, pesquisando as gírias russas e o resultado foi tão positivo que a autora me escreveu  para me cumprimentar pelo trabalho.

O que mais a tem marcado nos contatos com as crianças ao longo da vida?

Posso dizer que tudo que sei aprendi com as crianças. Claro que os livros, o teatro e o cinema me ajudaram a aprender muito, mas na prática, foram as crianças que me fizeram aprender coisas maravilhosas. Meus filhos Ricardo e André, ainda crianças, me fizeram refletir sobre coisas extremamente importantes. Uma ocasião, por exemplo, o André, com menos de dez anos, virou-se para mim e disse que gostaria de ser muito rico para não precisar trabalhar. Disse a ele que não havia entendido, que aquilo não fazia sentido. Ele então me explicou que queria ser muito rico para poder criar, estudar, fazer tudo aquilo que gostava e não por obrigação, apenas para ganhar dinheiro.  Ricardo, por sua vez, aos doze anos, me perguntou se eu achava justo tratar os filhos de modo idêntico. Claro que eu disse sim. Ele, então, observou que não concordava, pois a seu ver os filhos nunca são iguais e tratar o desigual como igual não é nem um pouco justo.

Qual a receita para uma vida tão produtiva e repleta de otimismo?

Sempre digo que poesia e humor são duas coisas fundamentais em nossas vidas. Por mais difíceis que sejam as situações a enfrentar, devemos sempre buscar o que há de engraçado em nossas vidas. Meu pai e minha mãe tinham muito senso de humor e me passaram isso.  Só assim, nós, judeus, podemos dar conta de dois mil anos de perseguições. Eu e Júlio nunca brigamos, porque eu o ensinei a ter senso de humor. Acho que isso é uma arte. Hoje se usa  frequentemente a palavra tolerância, mas eu não gosto dela. Acho que tolerar é muito pouco. Nós precisamos mesmo é aceitar o próximo com seus valores, suas idéias, seu universo pessoal. Se apenas o tolerarmos, jamais chegaremos a aceitá-lo. As coisas sempre aconteceram com enorme naturalidade em minha vida. Ainda solteira, eu achava um horror as pessoas acharem que estivesse procurando um marido. Nunca fiz isso e acabei encontrando o Júlio embaixo de uma mesa numa festa de casamento (risos). Num dos meus livros, chamado Acontecer, falo justamente sobre os acasos da vida. Qualquer coisa que aconteça com a gente pode virar uma bela história, é preciso apenas algum talento para fazer essa transposição do cotidiano. Estive casada por cinqüenta anos. O Júlio morreu nos meus braços, de um enfarte, com um livro na mão, do jeito que sempre desejou. E além da dolorosa perda e meu pai, aos 46 anos, quando eu tinha 20, enfrentei a morte de meu filho André, que estava com 26, num acidente automobilístico. Foram as piores dores que senti na vida. Mas até hoje, todos os dias, através dos retratos deles nas paredes de minha sala, continuo conversando com eles.

 

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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