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Silêncio dos Cúmplices

Se há dia comemorativo ou de memória que é imagem do que de pior podemos fazer, esse dia é o «Dia Internacional da Lembrança do Holocausto» (dia 27 de janeiro, pela resolução 60/7, de 1 de dezembro de 2005, da Assembleia Geral das Nações Unidas).

Hoje, num quadro em os Direitos Humanos em tantos aspectos e geografias parecem perder importância, torna-se imperioso olhar para estas más memórias, dando-lhes um sentido didático, procurando fazer com que o olhar para esses momentos de terror sejam, ao menos, instrumento possível para o presente.

De facto, nada melhor que olhar para o Holocausto, a Shoa, e ver como somos bons a matar, como somos eficazes na carnificina, como somos capazes das maiores crueldades em nome de ideias e de modelos. Como somos, enfim, iguais a nós mesmos, em quase nada diferentes dos nossos antepassados que fizeram esses gestos hediondos a que chamamos Holocausto.

E o passado não está assim tão distante. É muito próximo e corre-nos nas veias como que querendo tomar conta do nosso corpo em qualquer momento, despoletado por um qualquer discurso xenófobo ou intolerante.

Há bem pouco tempo, o papa Francisco falava do “silêncio cúmplice” de todos nós que sabemos o que está a contecer, quer com as comunidades cristãs do Médio Oriente, quer mesmo com as comunidades islâmicas que nessa região sofrem de forma única às mãos dos criminosos do Daesh, quer, ainda, com o que deixamos acontecer nesta epopeia vergonhosa dos refugiados.

O que mais me aflige em todo este quadro, seja o actual, seja o do Holocausto Nazi, é esse dito “silêncio cúmplice”. Deixamos acontecer, não saindo do nosso lugar de conforto, negando a mais elementar fraternidade para com os da nossa espécie. Se há o “Silêncio dos Inocentes”, temos em nós o “Silêncio dos Cúmplices”.

Sem dúvida, o silêncio é a mais aviltante arma da apatia. Há uns anos, estive em Varsóvia. Gostei bastante. Foi uma viagem importante a vários níveis. Mas talvez um dos mais importantes tenha residido na construção da minha própria pessoa.

Numa tarde, previamente combinada, com a Presidente de uma fundação judaica, fui ao guetto da cidade. Sim, o guetto onde os nazis reuniam os judeus da região para os deportar para campos de concentração.

Nessa vasta zona da cidade, terão morrido milhares e milhares de pessoas. Os números, como diz Saramago, são das menos exactas coisas que há no mundo. Contudo, aqui os números perdem a noção dos zeros que lhes colocamos para dar escala. São muitos os zeros, e foram muitas as pessoas.

Fizemos o roteiro habitual. Fomos aos locais de memória. Aos monumentos, aos sítios que se encontram marcados na paisagem para que sempre se saiba o que ali aconteceu.

Mas foi nos espaços sem memória do guetto que me senti verdadeiramente mal. Numa rua qualquer, entre prédios sempre iguais, construídos algures entre os anos 50 e os 70, uma vala normalíssima mostrava que tinha lugar uma mudança de canos de água. Nada de anormal, se não fossem os tijolos que daquela vala se viam. Iguais aos das poucas construções que restam desses sangrentos anos 40, eles eram a memória esquecida do quotidiano de pessoas como nós que, apenas nisso, foram diferentes: foram tratadas de forma sub-humana e morreram como não desejamos ver morrer animal algum.

Nesse momento, deixei de ser turista. Passei a ser um sofredor num caminho inexplicável: que fazem moradias naquele longo cemitério? Sim, aquele que fora o guetto de Varsóvia é agora um bairro residencial construído nas décadas de domínio soviético.

A memória é, de longe, o mais estranho e bizarro instrumento de inteligência que temos. Tanto consegue os mais brilhantes gozos, como nos consegue os mais desculpabilizantes esquecimentos. Como é fácil regressar, século após século, a discursos de radicalização que parece nada terem bebido nos dramas e nas lágrimas já antes vertidas?

Como se vive numa dessas habitações? Que memórias, que fantasmas? Que dores ou que gozos?

Dei por mim a olhar para um idoso que saía de uma dessas portas comuns. Teria idade mais que suficiente para já ser vivo quando naquele mesmo espaço morreram milhares de pessoas. Como consegue ele deitar-se naquela grande vala comum?

Ou, melhor, como conseguimos nós deitar-nos nas valas comuns das nossa memórias e das apatias e dos silêncios que comodamente nos ajudam a nada ver e muito menos a reagir?

Escreveu primorosamente Sophia de Mello Breyner Andresen que “Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar”… ignoramos, sim, a todo o momento. Aliás, como a História nos comprova abundantemente, para além de matar, ignorar é ainda o que fazemos melhor.

 

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