De que está à procura ?

Colunistas

“Salvação” de Ana Cristina Silva

Que papel poderá ter o ato da escrita como função redentora de uma perda, como salvação, como caminho para a compreensão da vida e da morte assim como do processo de luto de alguém que se ama? São estas as perguntas que se podem colocar ao ler este livro, “Salvação” de Ana Cristina Silva.

A escritora desenvolve duas narrativas num só livro, confronta dois homens marcados pelo luto e pela perda da mulher amada, em séculos diferentes, em situações e espaços distintos, contudo, com as mesmas angústias, as mesmas perguntas existenciais, o mesmo desassossego em relação à morte, ao questionamento religioso, as mesmas questões humanas que são  transversais em toda a literatura do cânone ocidental; a confrontação do bem e do mal, dos conceitos religiosos e idealistas que pautam a condição humana em todos os tempos.

O livro divide-se em duas narrativas; a de um homem, o narrador protagonista, que vive em pleno século XXI e que perde a sua mulher Sofia na luta contra o cancro. A segunda narrativa é o livro escrito pelo personagem- narrador, como exercício de compreensão e salvação da perda, o qual coloca um personagem em plena idade média, tendo este também perdido a sua mulher Catarina nas inexplicáveis e absurdas malhas da inquisição, e que, por causa disso, é obrigado a deixar o país e a sua filha. Nesta segunda narrativa o personagem David Negro, já em fim de vida, tenta resgatar a sua dor também pela escrita ao escrever as suas memórias numa carta endereçada à sua filha.

Este livro pode ser lido em dois planos diferentes: o plano da narrativa do ponto de vista humano e existencial e o plano histórico. No ponto de vista humano e existencial, os dois homens servem como espelho um do outro. A dor da perda é sentida de igual maneira nos tempos diferentes. O homem sente-se sempre diminuído e perdido face à dor. A fase de reconstrução deverá ser lenta e progressiva para que as emoções não se atropelem e conduzam o indivíduo ao abismo. Neste livro é evidenciado de maneira muito clara o poder da revisitação aos momentos de felicidade, à memória, e ao poder da escrita, como meio de redenção e salvação. Como se o ato de escrever servisse de arte terapêutica na reconstrução do amor por si próprio, na cristalização dos sentimentos perdidos. “Como se penetrando no texto literário se procurasse saber, até que ponto, no silêncio perverso do seu registo, reconhecemos os caprichos da nossa própria tristeza, mas também o convite para a nossa própria liberdade (Dionísio Vila Maior, Literatura em discurso.”

No segundo plano está o contexto histórico, o plano das vivências de cada um num determinado tempo e num determinado espaço, com as suas caraterísticas sociais e humanas.

Neste sentido, no registo histórico, somos levados a percorrer o obscuro tempo da idade média na Europa mergulhada no seu obscurantismo religioso, num teocentrismo implacável. David Negro, percorre este tempo com um sentido humanista diferente dos demais, revelando um racionalismo nascente e o começo da modernidade tendo com ele alguns aliados. Podemos ter uma perceção ao ler este livro de como foi o terrível tempo da inquisição com as suas perseguições e mortes, a reforma e a contrarreforma, das ideias de Lutero e Calvino, do massacre dos protestantes na noite de São Bartolomeu. Em suma, o fanatismo religioso da igreja católica. Como médico, David Negro tem uma atitude diferente perante a condição humana, perante os corpos que vê definhar na grande razia que foi a peste negra. Queria entender o profundo significado da doença. Não só compreender a fragilidade do corpo como encontrar uma explicação para a existência, ou não, da alma.

No século XXI, o narrador protagonista sente a mesma pressão, o mesmo desencantamento religioso, as mesmas inquietações humanas. Parece que os tempos se repetem e os homens tendem a levar o sentimento religioso a um plano sempre demasiado extremista. Neste sentido, este livro aborda os espectros do fanatismo jihadista, os massacres recentes por toda Europa, as mortes indiscriminadas. O homem usando a religião como forma de extermínio dos que não estão dentro das suas regras, dos seus cânones, dos seus dogmas.

Parece que a história sempre se repete. O homem, apesar de cada vez mais globalizado e tendo atingido patamares científicos jamais alcançados, esquece-se dos verdadeiros valores humanistas, perdendo-se nos meandros e no ébrio caminho do poder religioso, descendo à mais bárbara condição humana: o extermínio em massa.

À pergunta que muitas vezes me colocam: “o que é que procuras num romance? O que é que a narrativa ficcional te traz de saber e conhecimento?” – aproveito este livro de Ana Cristina Silva para responder. É esta capacidade de encontrar num romance, numa narrativa ficcional, a capacidade de o escritor colocar personagens em contextos e em tempos diferentes e neles encontrar a representação desse tempo, as suas inquietações, o seu modo de vida ou o seu ponto de vista humanista. A leitura serve também o propósito de roteiro de viagem, de conhecimento do outro, de empatia, de alteridade.  O livro para mim não serve apenas como aprendizagem do fenómeno literário na sua perspetiva metodológica, mas, muito mais, como perspetiva didática, sociocultural e interdisciplinar de um tempo ou de uma civilização.

“Salvação” de Ana Cristina Silva (Parsifal-2018)

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA