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Relações Igreja-Estado na Rússia

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As sociedades em desenvolvimento natural ou em processo de afirmação precisam, de um tecto metafísico que lhes dê consistência e uma cobertura possibilitadora de identificação e de fomento de comunidade. Na China temos o comunismo/confucianismo, no Ocidente os valores e direitos humanos (cristianismo), na Rússia a Ortodoxia, em países de cultura árabe o islão, na Índia o hinduísmo… 

A Igreja Ortodoxa Russa encontra-se numa situação muito complicada já desde o colapso da União Soviética e especialmente agora porque a guerra tem forçado as diferentes denominações a tomarem uma posição política clara! Num momento em que os nacionalismos se afirmam, surgem as “nacionalizações” da ortodoxia.

O Papa disse que Cirilo não deveria ser “ministro de Putin„ mas também não esqueceu de dizer que “o verdadeiro “escândalo” da guerra de Putin era “o ladrar da NATO às portas da Rússia”, fazendo com que o Kremlin “reagisse erradamente e desencadeasse o conflito”!

Na realidade, o argumento “desnazificar a Ucrânia”, usado por Putin para invadir o país, é inadmissível e situa-se na mesma lógica imperialista de intervenções levadas a efeito pelos EUA/NATO em nome da defesa dos valores europeus que diziam defender na terminada guerra do Afeganistão, etc.! Esta lógica, sempre nas mãos de potências fortes (tal como o recurso ao bloqueio Comercial) faz parte das estratégias elaboradas para afirmar a confrontação/rivalidade e impedir o surgir de uma cultura que tenha como base e fim a paz entre os povos! Uma cultura da paz terá de superar a estratégia de visão linear ou causal exclusiva para passar a uma estratégia de visão multifacetada numa relação de complementaridade inclusiva.

Não há perspectiva sem paisagem…

O Patriarca Cirilo I na qualidade de chefe religioso encontra-se entre a espada e a parede; entre a fidelidade ao evangelho e o papel institucional político (poder)!…

Na Rússia a ortodoxia revela-se como factor de identificação nacional e de união do seu povo; o comunismo já não serve a unidade, a ortodoxia compensa essa falta de que se socorre o poder secular em termos de complementaridade. Na relação Estado-Igreja, Cirilo deu prevalência à perspectiva cristandade descurando a do cristianismo!  

Um outro aspecto a ter em consideração reside nas distintas velocidades a que andam as diferentes culturas em termos de sua contextualização e factores de identificação; estas  expressam-se nas sociedades e na História (sociologia, política…) com rosto próprio, o que não legitima uma cultura arrogar-se o direito de condenar ou se impor à outra e para mais numa situação em que se encontram razões de Estado frente a frente. 

O Ocidente, constituído por unidades de povos mais ou menos homogéneos, usa hipocritamente de um argumento para se insurgir contra centralismos que não respeitam as identidades legítimas nos seus países e, em seu benefício, faz uso do argumento da democracia e dos direitos humanos para intervir e desestabilizar povos multiculturais onde a colonização interna ainda se encontra em processo. Deste modo, o imperialismo económico junta-se ao mental servindo-se de expressões moralistas como legitimadores do fomento de estruturas de violência.

A consciência, a nível social e individual, de cada cultura adapta-se paulatinamente ao desenvolvimento das suas circunstâncias históricas (numa correlação mais ou menos emancipatória de medida de forças entre indivíduo (grupos cívicos) e instituição…

Podemos observar que com o protestantismo (sec. XVI), apesar dos seus aspectos positivos, se expressou um certo extremo de emancipação do crente em relação à comunidade religiosa, levando-o, porém, a um certo encosto ao poder secular. No Catolicismo tem-se mantido ou procurado manter uma certa balance de equilíbrio na relação e interdependência de crente-comunidade e como o crente é ao mesmo tempo cidadão houve um correspondente desenvolvimento nas relações Estado-Igreja que vinha da admoestação de Jesus: “A Deus o que é de Deus e a César o que é de César”!…

Atualmente, uma vontade política secular ocidental, partindo da sua consciência histórica vigente, reage de maneira exacerbada em relação à Ortodoxia, o que seria compreensível em termos de cristianismo, mas o que move as potências ocidentais tal como a federação russa não é o cristianismo, mas o poder político e económico de domínio a disputar-se entre a Rússia e a Nato, o que por outro lado leva a ortodoxia a reagir de modo a optar no sentido cultural de cristandade!…

Se Cirilo I comete o erro de comprometer demasiadamente a igreja com o Estado, o Ocidente comete o erro de, por razões óbvias de poder, querer ver a sociedade russa desunida para mais facilmente ser desmembrada e, enfraquecida, tornar-se mais acessível ao poder ocidental! Daí ser muito necessário o espírito de discernimento ao avaliarem-se fenómenos como os que acontecem agora em atmosfera de guerra! (De não esquecer que uma das acções de empenho do Ocidente na Ucrânia foi dividir a ortodoxia na Ucrânia anos antes da intervenção de 24 de fevereiro!…

Lamentavelmente, a opinião pública é induzida em erro ao ser levada a pensar que em política se trata de humanismo e não de poder, de moral e não de interesses bem egoístas que por vezes se resumem em “razões de Estado” à mistura de interesses das elites, mas apresentados às populações  como se se tratasse só de aspectos humanos morais em benefício delas! Por outro lado, muitos cidadãos cristãos do Ocidente são levados a criticar severamente o Patriarca ortodoxo não notando que estão a ser levados de Pontius Pilatos para Herodes e vice-versa! Não tem havido um discurso democrático humano no espaço público e o que existe está agora a desenvolver uma dinâmica perigosamente destrutiva. A fim de se ultrapassar a divisão entre Oriente e Ocidente, divisão esta que atravessa também a nossa sociedade, é necessário aprender de novo a argumentar segundo o método da controvérsia (2), de maneira a adoptar-se um discurso humano inclusivo que, movido pelo respeito, omita a discriminação e a exclusão.

O governo de Moscovo e a jerarquia ortodoxa ainda caminham em colaboração numa presumível intenção de defesa nacional.

O Constantinismo conduziu a uma certa secularização do cristianismo e, por outro, a uma certa cristianização dos órgãos de poder (Criou-se também uma relação mais no sentido de cristandade do que de cristianismo genuíno)! Que Constantino tenha adoptado o Cristianismo e o tenha instrumentalizado como ferramenta para adiar a queda do império romano só revela a inteligência política de Constantino que tinha feito as suas experiências em terras ibéricas e sabia equacionar os problemas reais do império romano.

Para se avaliar diferentes biótopos culturais são necessárias criatividade e multi-perspectivas de observação para possibilitar a criação de impulsos inovadores na sociedade civil e religiosa. 

Numa época em que todos os bons espíritos nos abandonaram, precisamos de reflectir para agir humanamente! Urge uma mudança de paradigma no tratamento da diversidade cultural do outro (parceiro e adversário), de maneira a permitir um fluxo na transversalidade e não de cima para baixo.  Em vez de se cultivar um discurso/diálogo num contexto orientado para a negatividade ou para o défice, o respeito e a compreensão cultural da diferença deverão conduzir a uma transversalidade de ideias e atitudes pela positiva e a reconhecer nelas potencialidades enriquecedoras de um lado e do outro, de maneira a poder-se encetar um caminhar comum! Interessante para a ordem do dia seria o que nos une e não o que nos separa!

António Justo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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