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Quando doi ter razão

Esperei pelo (teórico) termo da época dos incêndios florestais para recordar a crónica que, em agosto de 2016, publiquei no BOM DIA com o título «Em 2017 haverá mais (e em 2018, e em…)».

Pretendera com ela alertar para o caráter repetitivo (tragicamente repetitivo) deste cataclismo que dilacera Portugal desde há, provavelmente, pelo menos cinquenta verões.

Jamais, porém, imaginei que a realidade viesse a ser tão pavorosa. Se, em junho, a tragédia de Pedrógão Grande, com o seu inédito número de baixas humanas, constituíra um triste recorde, eis que, escassos três meses mais tarde, um inferno de chamas voltou a devastar o Norte e o Centro de Portugal, quando, em teoria, a época de incêndios deveria ser já coisa do passado (por este ano).

Algo vai mal, quando a área ardida, só em 2017, é sete ou oito vezes superior à média da última década e quando estes são os piores incêndios desde 2002 (ou seja, ultrapassando os casos extremos de 2003 e 2005).

Algo vai mal, quando a área ardida no pequeno Portugal é, em valor absoluto, um terço da de toda a Europa. Recordes assim seriam inquietantes até na Rússia, o país mais extenso do mundo. Note-se que não se trata de valores relativos (como seria, por exemplo, a seguinte situação hipotética: «em percentagem da superfície total do seu território, Portugal deteve o recorde de 2017»). Não: qualquer dos outros países europeus tradicionalmente flagelados por incêndios estivais (Espanha, França, Itália, Grécia), todos várias vezes maiores do que Portugal (com exceção da Grécia, que se fica por uma vez e meia), permaneceu muito aquém, em termos de superfície total ardida. A comunicação social divulgou um gráfico, com estes países no eixo das abcissas, por ordem decrescente, e as respetivas áreas ardidas em 2017 no eixo das ordenadas: a vertical de Portugal situa-se na ponta esquerda, inquietantemente preponderante em relação ao segundo lugar, o da Itália (muito, muito abaixo); na ponta direita, a Grécia, com um invejável valor mínimo e que, apesar de não menos atingida por secas e temperaturas estivais extremas, parece apontar-nos um caminho para a gestão dos sinistros.

Algo vai mal quando, aos primeiros frescores de outono, o problema é visto como mal que «doeu mas já esqueceu». Até ao próximo pavor, que, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas…

Algo vai mal, quando, depois de caírem umas escassas gotas de chuva, jornalistas que dão provas de um desolador desconhecimento na matéria perguntam ao ministro da Agricultura se a seca acabou.

Algo vai mal, quando o político José Ribeiro e Castro lamenta a onda «eucaliptoclasta» que se seguiu ao incêndio de Pedrógão [«Os mortos de Pedrógão e a regionalização», Observador, 27/6/2017] ou o jornalista José Manuel Fernandes procura zelosamente desresponsabilizar os grandes eucaliptais e pinhais pelas proporções devastadoras dos incêndios florestais [«Incêndios, eucaliptos ou a ignorância e arrogância do Bloco (e do dr. Louçã)», Observador, 28/6/2017].

Por conseguinte, algo vai mal quando se recusa assumir a causa profunda do problema, a qual, em traços gerais, consiste na persistência de um coberto vegetal incompatível com condições climáticas mediterrânicas. Verões quentes e secos não se compadecem com grandes extensões de espécies arbóreas altamente combustíveis como eucaliptos e pinheiros-bravos, ademais em regime de monocultura. Pensar-se-á que Portugal tem o clima da Nova Zelândia?, que suporta o coberto vegetal da Austrália? O cataclismo repetir-se-á, ano após ano, enquanto não se interiorizar que as matas homogéneas são piras em potencial, paiois de pólvora ao pé de lareiras.

A despeito das imagens sedutoras que alguma comunicação social divulga (ações de repovoamento com espécies da flora tradicional, que, na verdade, são mais a exceção do que a regra), o replantio das zonas ardidas faz-se essencialmente com eucaliptos. Persistirmos na defesa destas espécies após os incêndios seria o mesmo que os londrinos persistirem na defesa dos revestimentos altamente combustíveis para fachadas após o incêndio da torre Grenfell. Prudentemente, começaram logo a substituir esses revestimentos noutros edifícios residenciais. Transpondo (na medida do transponível) para o caso das matas portuguesas, o recomendável seria substituir as árvores altamente combustíveis (eucaliptos, pinheiros-bravos) por outras que, comprovadamente, fazem abrandar a progressão dos fogos (e até caraterizam mais autenticamente a nossa flora tradicional): folhosas, como carvalhos, castanheiros, nogueiras, freixos, sobreiros, amendoeiras, alfarrobeiras… Haveria sempre incêndios, mas não atingiriam as proporções de descontrolo que todos os anos se nos patenteiam.

Biologicamente, o fogo convém ao eucalipto: nas grandes extensões australianas da sua origem, permite-lhe, por um lado, ocupar os novos espaços libertos de vegetação concorrente; por outro, é fundamental para a germinação das suas sementes (fenómeno igualmente caraterístico das mimosas e outras espécies de acácias). Por isso, nas matas de Pedrógão que arderam há menos de seis meses, os troncos aparentemente mortos dos eucaliptos começam a reverdecer, para encanto de alguns ingénuos jornalistas.

Avança-se amiúde o argumento economicista, segundo o qual o eucalipto e o pinheiro são a preciosa matéria-prima da indústria da pasta de papel, vital para o produto interno bruto português. E que, nos pinhais e eucaliptais das grandes empresas de celulose, adequadamente cuidados e vigiados, não há incêndios. Parece então de concluir que eucaliptos e pinheiros-bravos devem restringir-se às zonas a cargo de quem saiba geri-los e controlá-los. A sua atual predominância na chamada «floresta» portuguesa é um ato suicidário.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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