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Pode alguém ser livre se outro alguém não é? (1)

Agarrada ao meu podcast enquanto preparava um café, eu não queria acreditar no que estava a ouvir: o Supremo Tribunal americano revogara o acórdão Roe v. Wade que, desde 1973, conferia às mulheres nos EUA o direito de abortar.

A reportagem deu conta das ruidosas manifestações de júbilo dos autodenominados movimentos pró-vida e do desespero das ativistas dos movimentos pró-escolha. Opinaram governadores que imediatamente accionaram leis já preparadas para proibir a IVG e encerrar os serviços que a praticavam. Falaram as inconsoláveis responsáveis por alguns desses serviços. Algures no Arkansas, um dos Estados mais conservadores, um honesto cidadão afirmou que só falaria de vitória «quando todos os serviços de planeamento familiar encerrassem as portas para sempre».

Gelou-se-me o sangue nas veias. Senti-me catapultada, não para a Idade Média porque não é preciso ir tão longe, mas sim para a minha própria adolescência e juventude. Nessa época (finais dos anos 70 e princípio dos anos 80), não havia nem educação sexual, nem planeamento familiar, nem distribuição gratuita de anticoncecionais. Havia conversas à socapa, livros comprados às escondidas e dicas de uma irmã ou de um irmão mais velho.

Se o nosso próprio corpo era um mistério, o corpo do sexo oposto mais misterioso era. Os órgãos sexuais femininos e masculinos eram tratados sucinta e cientificamente nas aulas de Biologia no então último ano do liceu (nem todos lá chegavam e muitos estudantes não tinham essa disciplina). O sexo era tabu as famílias protegiam a ferro e fogo a virgindade de suas filhas, que deviam chegar virgens e inexperientes ao casamento, pois cabia aos maridos ensiná-las a… fazer bebés.

Até comprar preservativos era complicado. O rapaz esperava à porta da farmácia até que não estivesse ninguém lá dentro. Entrava e, atrapalhado, pedia os preservativos. O farmacêutico desaparecia e voltava com o produto embalado, para ninguém ver. Preservativos à venda nas caixas dos supermercados?? Em distribuidores automáticos nas ruas ou nas casas de banho públicas como no estrangeiro? Tais modernismos vierem mais tarde, trazidos por muitos daqueles jovens alemães e holandeses que acorreram a Portugal, cheios de curiosidade pela nossa revolução e a reforma agrária e que, naturalmente, se comportavam no vestir e em tudo o mais da forma descomplexada a que estavam habituados nos seus países.

Havia, claro está, famílias e setores progressistas. Mas tal não bastava para contrariar a influência deletéria de se viver e crescer numa sociedade conservadora, hipócrita e altamente repressiva da sexualidade de todos em geral e da mulher em particular.

Em resumo, a juventude, pouco informada e com muitas teias de aranha na cabeça, aprendeu à sua própria custa. Serão poucas as mulheres da minha geração, e possivelmente de todas as outras, que não tenham sido confrontadas, num qualquer momento da vida, com a necessidade ou o desejo de abortar ou com a de ajudar uma amiga nesta situação.

Nesse tempo, a expressão «IVG» ainda não tinha sido cunhada e abortar era crime. Lembro-me de recolhermos fundos entre amigos para se ajudar esta ou aquela moça grávida ou este ou aquele rapaz cuja namorada engravidara. E a quem recorrer? A A, que conhecia B, cuja prima tinha um vizinho a cursar Medicina que conhecia uma parteira que… Ou aquela clínica na fronteira com Espanha. Histórias deste calibre. Recordo o medo, a culpabilidade e a solidão. Faziam-se figas e acendiam-se velas para que tudo corresse bem e não fosse necessário recorrer às urgências.

Hoje, após décadas de luta pelo direito à contraceção e à descriminalização do aborto, apoiadas por serviços de planeamento familiar gratuitos, tanto em Portugal como no Luxemburgo[2], informadas sobre a panóplia de anticoncecionais disponíveis, conscientes da importância de refletir a dois sobre os filhos desejados e sobre o bem-estar que lhes podemos proporcionar… todas sabemos que não há métodos anticoncecionais infalíveis (com exceção da esterilização) e que nenhuma mulher fértil está livre de ter de recorrer a uma IVG. Poder interromper uma gravidez indesejada sem o risco de morrer, ser presa ou arruinar-se foi uma das mais importantes conquistas das mulheres.

A ausência ou o desmantelamento de políticas e de serviços públicos em matéria de planeamento familiar, que garantam o acesso ao aconselhamento e à contraceção gratuitos, qualquer que seja a idade, o estado civil e o género da pessoa que os solicita, traduz-se nomeadamente num aumento do número de gravidezes indesejadas, para além de contribuir para a desinformação, a infelicidade e a propagação de doenças sexualmente transmissíveis.

Acresce que a ausência ou o desmantelamento de políticas públicas em matéria de IVG, respeitadoras do desejo e das necessidades das mulheres, flexíveis e socialmente justas: a) geram grandes problemas de saúde pública; b) criam e agravam desigualdades, ao imporem maternidades e paternidades indesejadas; c) limitam o acesso das mulheres ao mercado de trabalho, favorecendo a precariedade; d) arrastam famílias para a pobreza e e) empobrecem mais ainda quem já é pobre.

E assim acontecerá nos EUA, tal como acontecia em Portugal.

Com a decisão do Supremo Tribunal americano, venceram as forças perversas e obscurantistas que entendem o sexo como um mero instrumento da procriação e a procriação como um assunto de Estado, negando às mulheres, esses seres subalternos, o direito de serem donas e senhoras do seu próprio corpo e a competência de decidirem o que é melhor para si e para as respetivas famílias.

Enganam-se rotundamente os juízes do Supremo Tribunal americano se creem que revogar o acórdão Roe v. Wade vai alterar ou diminuir o desejo ou a necessidade de as americanas recorrerem à IVG. Vai, isso sim, torná-la muito mais difícil e muito mais perigosa. As mulheres americanas vão precisar de ajuda. Cá estaremos.

Cá estaremos para nos protegermos contra cenários semelhantes, para que não surjam na Europa mais iluminados que, por efeito de dominó, queiram mandar alegremente às urtigas a mais dura conquista da mulher, como aconteceu na Polónia. O melhor escudo de proteção seria a consagração do direito à IVG nas constituições nacionais. Temos muito trabalho pela frente.

Eduarda Macedo

[1] O título desta crónica é também o de uma canção de Sérgio Godinho.

[2] Ver Planning Familial Luxembourg, http://www.pfl.lu, e Centre national de référence pour la promotion de la santé sexuelle et affective, https://www.cesas.lu

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