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Para além do teto de vidro: É urgente redefinir igualdade de género em Portugal

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Vivemos num tempo em que a igualdade de género é proclamada como uma bandeira civilizacional. No discurso político, nas campanhas institucionais, nos manuais escolares e nos relatórios de sustentabilidade empresarial, a narrativa é inequívoca: homens e mulheres devem ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos, as mesmas possibilidades de ascensão profissional e reconhecimento social. No entanto, a realidade é frequentemente menos luminosa do que os discursos que a pretendem descrever. Em pleno século XXI, mesmo em sociedades ditas desenvolvidas como a portuguesa, persistem assimetrias profundas que, embora mais subtis do que outrora, continuam a tolher o pleno exercício da igualdade.

O argumento de que as mulheres não enveredam por certas áreas, como as engenharias, a robótica ou a política de alto nível, por simples falta de interesse, é uma simplificação que ignora o peso cumulativo de décadas — ou mesmo séculos — de condicionalismos sociais, culturais e psicológicos. Escolhas profissionais são moldadas desde tenra idade: nos brinquedos oferecidos, nos elogios dirigidos, nas expectativas implícitas dos adultos, na representatividade dos modelos de sucesso. Uma rapariga que cresce rodeada de exemplos femininos na medicina, no ensino ou na literatura tenderá a ver esses campos como acessíveis; já uma que nunca viu uma engenheira aeroespacial ou uma CEO de uma multinacional portuguesa talvez nem sequer conceba essa possibilidade como realista.

Não se trata de impor quotas de presença feminina em todos os sectores por uma questão de imagem ou correção artificial. Trata-se, isso sim, de remover os bloqueios invisíveis — o chamado “teto de vidro” — que continuam a limitar a ascensão das mulheres a certos patamares de poder. Em Portugal, nunca tivemos uma mulher Presidente da República ou Primeira-Ministra eleita democraticamente. Este facto, por si só, é um reflexo eloquente de um sistema onde a igualdade formal não se traduz ainda numa igualdade substantiva.

Paradoxalmente, a história portuguesa não está desprovida de figuras femininas de poder. Rainhas como D. Maria II tiveram um papel relevante no xadrez político da nação. Contudo, é preciso lembrar que esse poder era hereditário e excecional, e não representava uma abertura sistémica ao género feminino. No contexto moderno, o acesso à liderança deve basear-se em mérito, mas também na garantia de que o mérito feminino não é silenciosamente desvalorizado.

A diferença salarial entre homens e mulheres é outro símbolo persistente desta desigualdade estrutural. Segundo vários relatórios nacionais e europeus, as mulheres continuam a ganhar, em média, menos do que os homens para funções idênticas ou equiparáveis. Esta disparidade não se deve apenas a uma diferença direta de remuneração, mas também à segregação ocupacional, à menor representação feminina em cargos de decisão, e à penalização implícita da maternidade no percurso profissional.

A solução para estas iniquidades não passa exclusivamente por boas intenções ou slogans bem intencionados. É urgente uma mudança de paradigma ancorada em três grandes pilares: educação, reformas políticas e medidas legislativas eficazes.

Educação: o alicerce de uma mentalidade inclusiva

A educação é o instrumento mais poderoso para moldar mentalidades. Uma reforma educativa com enfoque na igualdade de género deve ir além dos conteúdos curriculares: deve penetrar na forma como os professores são formados, nas práticas pedagógicas, nos manuais escolares e na interação quotidiana nas salas de aula. Devem ser promovidas competências de pensamento crítico que ajudem os alunos a identificar estereótipos de género, a questionar normas sociais e a reconhecer a diversidade de capacidades humanas além do binário masculino-feminino.

Modelos femininos de sucesso devem ser visíveis e acessíveis às novas gerações. Não basta falar de Marie Curie ou de Amália Rodrigues. É essencial apresentar cientistas, engenheiras, atletas, empresárias e líderes políticas contemporâneas, portuguesas e internacionais, que desafiaram o status quo. A representatividade não é um detalhe: é uma condição para a aspiracionalidade.

Reformas políticas: por uma democracia verdadeiramente paritária

A política é um espelho da sociedade, mas também um motor de transformação. Para que mais mulheres ocupem lugares de destaque no Parlamento, nos governos e nas autarquias, é necessário que o sistema político se torne mais inclusivo e responsivo à diversidade.

Uma via possível é a adoção de quotas temporárias de género, como já ocorre em vários países europeus. Embora controversas, estas medidas têm mostrado resultados concretos no aumento da presença feminina em órgãos de soberania. A par disso, devem ser criados mecanismos de apoio à conciliação entre vida pessoal e profissional, incluindo licenças parentais mais equilibradas, horários flexíveis e serviços de apoio às famílias.

Medidas legislativas e empresariais: da teoria à prática

A legislação deve ser mais rigorosa e eficaz na fiscalização da igualdade salarial e no combate à discriminação de género no local de trabalho. Empresas devem ser obrigadas a publicar relatórios de transparência salarial e planos de igualdade de género. Incentivos fiscais e certificações de responsabilidade social podem ser atribuídos às organizações que promovam efetivamente a paridade.

Além disso, importa criar campanhas de sensibilização que combatam os preconceitos implícitos e promovam uma cultura de respeito e equidade. Tais campanhas devem ser multidimensionais: dirigidas às escolas, às empresas, às famílias e aos meios de comunicação social.

Conclusão: um futuro que se constrói no presente

A igualdade de género não é um destino inevitável da modernidade. É uma construção coletiva que exige vontade política, empenho social e transformação cultural. Portugal tem dado passos importantes, mas há ainda um longo caminho a percorrer para que homens e mulheres possam realmente escolher os seus percursos sem amarras invisíveis.

A verdadeira igualdade não se mede apenas na presença, mas na influência; não apenas nas oportunidades, mas no reconhecimento. E só quando deixarmos de nos espantar com uma mulher a liderar uma empresa, um governo ou um exército, é que poderemos dizer que ultrapassámos, finalmente, o teto de vidro.

Porque mais do que dar lugar às mulheres, trata-se de construir uma sociedade onde cada um, independentemente do seu género, possa ocupar o seu lugar por inteiro.

António Ricardo Miranda

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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