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Os quatro amigos: O que vês nesta nuvem?

(Segunda parte)

(Leia aqui a primeira parte)

Apesar do intenso calor que se fazia sentir nesse dia, do sol que em certas partes ao bater no solo se levantava numa espécie de cortina transparente e que ficava ali a pairar como que em efervescência, uma nuvem branca, completamente estática por cima das suas cabeças, quase que propositadamente ali houvesse sido colocada, qual enorme novelo de lã a sobressair num céu azul como pano de fundo, esperava pacientemente a sua vez de entrar nesta história, e apesar da discreta e silenciosa presença, saberemos apenas da sua enorme e primordial importância no desenrolar deste enredo, muitas páginas depois desta mesma que agora se escreve(…)

Apesar da má experiência que tiveram ao serem apanhados pela mulher do lavrador que lhes transformara num repente a sensação de liberdade, numa sensação de embaraço e pudor, simplesmente pela sua presença, nem por isso decidiram mudar de estratégia.

E então a rotina desse mágico verão, era sempre a mesma. Encontravam-se no adro da igreja da pequena vila logo a seguir ao almoço, depois uma caminhada de cerca de três quilómetros até à poça, a roupa que se lhes voava do corpo atirada à trouxa mocha para as silvas, e depois os saltos acrobáticos para dentro de água, a gritaria, os risos, a alegria do mais puro e mais alegre com que se pode presentear a natureza que de nós nada mais espera a não ser que com ela partilhemos o respeito mútuo e a alegria.

Já não se pode dizer mais a partir de agora que os rapazes andavam para ali a correr e a dar saltos para a poça com o pirilau ao dependuro, uma vez que o Mário, num desabafo ainda referente ao episódio com a mulher do lavrador, confessou que o que ainda mais lhe custou não foram as vergastadas na melancia onde no meio lhe faltava uma boa talhada, mas sim o facto de ter que andar ali a dançar à frente dela, completamente nu, com…e hesitou aqui por uns momentos a tentar encontrar o nome adequado ao instrumento a que ele não queria apelidar de pirilau por lhe parecer bastante diminutivo do possível papel que este viria a desempenhar no futuro, a acreditar na maneira e excessivos cuidados que todos os adultos tinham na preservação da sua reputação, e também não lhe queria chamar pila, que tecnicamente e com os cerca de oito anos de idade que cada um deles tinha, seria o mais correto, mas também o mais banal.

Por isso, naquele momento de hesitação em que parecia oscilar entre designações ao instrumento que andava para ali a abanar com as corridas e os saltos, uma espécie de cacarejar que lhe pareceu chegar aos ouvidos vindo lá de longe, lembremo-nos que o cenário é o de uma quinta, deu-lhe o balanço necessário para batizar o dito cujo de “ganso”.

Em boa hora este cacarejar se entrepôs entre o oscilar e as dúvidas com que a procura do nome certo o houvesse levado ao nome “ganso”, porque os outros rapazes desataram numa gargalhada tão espontânea que parecia até contagiar as espigas de milho, muito embora o Raul, que sempre tinha uma gargalhada mais espontânea do que de espontâneo se pode esperar, ajudasse e de que maneira a que os outros dois, o Toninho e o Diogo, se deixassem arrastar nessa onda de boa disposição.

“Ganso…?” Pois ganso seria (…)

Instalaram-se na relva, deitados lado a lado, corpo estendido, mãos entrelaçadas a segurar a cabeça qual improvisada almofada, e por momentos ali ficaram em silêncio, olhos postos na nuvem branca que parecia absorver de maneira quase misteriosa e envolvente, quaisquer que fossem naquele momento os seus pensamentos. (…)

O ganso, que não tinha ainda, nem cabeça nem pescoço, para que em posição de repouso pudesse tombar, ou para a direita ou para a esquerda, estava antes, por razões próprias da tenra idade, com a mesma posição que faz lembrar, em dias de aborrecida apatia, um olhar triste e sorumbático, onde o queixo pousado no topo dos joelhos, das pernas dobradas e juntas pelos braços apertados, se perde em mil pensamentos.

As gotas sujas da água da poça que se iam formando no topo da pele à medida que o corpo molhado ia secando, com o calor do sol pareciam apesar de tudo reluzir.

De olhos fixos na nuvem branca com um céu azul como pano de fundo, depois de um suspiro que foi arrancar bem ao fundo do estômago, o Toninho quebrou o silêncio.

-Não sei bem porquê, mas esta nuvem parece-me a cabeça de um cavalo…

-Não acho, – respondeu o Diogo, – a mim parece-me mais um dragão a mandar fumo pela boca…olhem lá. Conseguem ver aquela cabeça alongada? Aqueles bocados de nuvem mais disperso são o fogo a sair-lhe da boca…

-Não, aqueles bocados de nuvem dispersos são a crina do cavalo… – ripostou o Toninho tentando fazer valer a sua teoria.

– Pois a mim não me parece nada disso. Parece-me mais… um comboio a vapor. As nuvenzinhas dispersas são o fumo da chaminé…

Disse o Mário. E para fazer valer o seu comboio a vapor, que era precisamente o que os seus olhos viam naquela nuvem, lá foi descrevendo os contornos do dito comboio como se estivesse ali naquele preciso momento a desenhar na enorme tela azul. (…)

Ainda o Mário, no seu desenho descrito da nuvem, não tinha chegado sequer à rodas do seu comboio a vapor, e já o Raul lhe pegava no traço e o levava a criar a forma de uma grande ponte, justificando as pequenas nuvens dispersas, mas pertencentes à mesma grande nuvem, como os carros que circulavam nessa ponte.

Uma tarde maravilhosa de calor, num dia maravilhoso na vida destes quatro amigos. A imensidão de um céu azul até onde a vista podia alcançar e onde uma única nuvem, branca e quase misteriosa como se propositadamente ali houvesse sido colocada, e, no entanto, nenhum dos rapazes via ou concebia da mesma maneira, o formato da nuvem. O que se pode concluir que os olhos e a mente não veem da mesma maneira, e que em determinadas situações as opiniões que divergem à volta de um mesmo assunto, apesar de tudo não provam que ninguém está certo ou errado, o difícil é sempre fazer entender que cada um tem a sua maneira própria de ver determinada situação.

Cada um dos rapazes viu na mesma nuvem uma forma diferente. Mas mais do que tentar decifrar o significado de cada uma das formas que também cada um deles via na nuvem, era o significado que tinha o facto de pela primeira vez, mesmo que de maneira pacifica e amigável, se dava ali a sua primeira divergência.

E sob aquela nuvem ali colocada à frente dos seus olhos, os rapazes juraram amizade eterna. E também essa era a primeira promessa que nenhum deles tinha a certeza de poder ser cumprida, simplesmente porque os rapazes que agora ali selavam esse pacto, haveriam de crescer, e de maneira natural se haveriam de fundir no adulto que cada um se haveria de tornar. A criança inocente que a transbordar de alegria e felicidade de todas as vezes que saltava para a poça, estava genuinamente convicta dos seus mais nobres sentimentos ao selar o pacto de amizade com os amigos. Mas a rapaziada cresce, muito ou pouco, cresce. As crianças tornam-se adultos, e os adultos, de maneira que é de difícil entendimento, fazem de tudo para não se portarem como crianças, e esse é o primeiro grande erro do adulto ao fazer tudo para se afastar da criança que foi. A vida tem destas coisas…vá-se lá entender porquê. (…)

(Excerto do livro em construção, – o símbolo (…) significa que foram eliminados alguns parágrafos no sentido de adaptar o texto para o Bom Dia.)

Nota do autor – No que respeita à história, a amizade dos rapazes irá perdurar por muitos e longos anos, mas à medida que vão crescendo também vão seguindo outras direções, e a jura de eterna amizade feita entre eles naquele dia em que cada um tenta achar uma forma para a nuvem, vai perder muita consistência devido ao afastamento e as vicissitudes da própria vida. Seguir-se-á o percurso da vida de cada um, os sucessos e os insucessos, as vitorias e as derrotas, os segredos mais inesperados. O que será e como será a amizade em diferentes fases das suas vidas e a história que começa junto à poça com quatro rapazes amigos do peito, terminará no mesmo local, muito embora nem o local nem os protagonistas, em nada se pareçam com o que outrora foram. Desta vez nenhum deles tirará a roupa…

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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