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Os quatro amigos e a mulher do lavrador

(Primeira parte)

A verdadeira algazarra havia começado precisamente no momento em que os rapazes chegaram à poça situada numa das extremidades do enorme campo de milho.

A água que se acumulava na poça nascia de uma mina situada a escassos metros, e todas as manhãs bem cedinho, assim como todos os fins de tarde pela fresca, a mulher do lavrador utilizava-a para fazer a rega do campo, abrindo com a enxada uma espécie de carreiro por onde a água deslizava numa ligeireza apressada, seguindo um labirinto de outros carreiros, guiada pelo toque que a mulher do lavrador ia dando com a enxada aqui e ali para que a água chegasse a toda a área do campo coberto de milho.

Os rapazes sabiam bem os andamentos da mulher do lavrador e por isso também sabiam que a melhor altura de poderem disfrutar das suas aventuras num dos melhores períodos das suas vidas, mesmo que nenhum deles tivesse ainda o discernimento para se aperceber dessa realidade ou lhe dar alguma importância, era o período entre as duas e as cinco da tarde, precisamente quando o sol, sem dó, muito menos qualquer piedade, atacava ferozmente.

Os rapazes sabiam bem estes andamentos da mulher do lavrador porque um prévio trabalho de espia, feito em equipa, dar-lhes-ia a estratégia necessária para se organizarem no sentido de poderem usar a poça e a água sempre fresca que nela corria, para uns banhos ruidosos, cheios de alegria, cheios de vida. Mas, há que o dizer também, a verdadeira razão pela qual se decidiram a planear estrategicamente as suas idas à poça, nasceu a partir daquele dia que nenhum deles recorda com qualquer saudade, muito menos entusiasmo.

Estavam divertidíssimos a chapinhar na água, a exibir saltos acrobáticos uns aos outros, a misturar gritos e gargalhadas de pura e saudável alegria, enquanto que o tempo, quase de maneira traiçoeira e maliciosa ia passando bem mais depressa do que qualquer um deles disso se apercebesse.

Quando finalmente uma espécie de um quarto sentido, porque houvesse sido ele sexto e há muito se tinham apercebido que estava mais do que na hora de se passarem ao fresco, os impeliu a deduzir que seria a altura de abandonarem a poça antes que a mulher do lavrador aparecesse.

Como sempre o faziam, deram uma corrida completa em redor do campo, em pelota, porque sabiam que concluída essa volta, estavam eles secos e prontos para se vestirem e seguirem para casa. Nesse dia tiveram uma surpresa desagradável quando completavam a dita volta e chegavam junto da poça. A primeira aflição foi quando constataram que a roupa que sempre deixavam estendida nos arbustos que circundavam a poça, tinha misteriosamente desaparecido.

Pior foi quando o mistério se revelou. Por trás dos arbustos surgiu a mulher do lavrador, segurando debaixo do braço esquerdo um punhado de roupa, e na mão direita uma vara com que lhes açoitou o rabo ao mesmo tempo que lhes gritava de maneira nada cordial,

– Ah seus malandros…a poça é para regar os campos, não para vos chafurdares nela…

E isto mesmo que nenhum deles levasse consigo para casa mais do que uns golos que às vezes se lhes entrava garganta abaixo, acidentalmente, acontecendo quase sempre em alturas de maior entusiasmo e algazarra.

Nenhum deles, mesmo quando a vara se lhes era disferida num golpe de lhes cortar a respiração, atentara sequer fugir deixando a roupa para trás. O raio da mulher não a largava, e chegou-se a pensar, pelo menos assim o discutiram os rapazes já bem mais tarde, que ela parecia estar, apesar de mostrar sempre um ar zangadíssimo, a tirar uma espécie de gozo e diversão, de toda a situação. Por isso, os rapazes, – Ai minha senhora, dê-nos a roupinha por favor, – à medida que corriam em volta dela a tentar por todos os meios deitar a mão à roupa que ela firmemente segurava debaixo do braço, e a pularem quais pequenos cangurus, sempre que ela, a mulher do lavrador, lhes acertava com a vara nas nádegas.

Fica-te que nunca mais. E isto foi promessa que fizeram a eles mesmos e entre si. Mas, desengane-se quem pensar que estes miúdos se estavam a dar por vencidos, apenas precisavam de encontrar uma nova estratégia para poderem continuar a usufruir da poça, dos banhos em dias de imenso calor, mas acima de tudo os impagáveis momentos de alegria e pura felicidade que da aventura colhiam.

Assustados com a mulher do lavrador, a vara que parecia acompanhá-la para quase todo o lado, e o seu ar sinistro e de poucos amigos, que a partir desse dia passou a ser escrutinado pelos rapazes, numa análise fisionómica da qual nenhum deles até esse dia havia aprimorado com tanto detalhe e precisão. Testa alta e enrugada, ideal nestes dias de calor para lá esmagar um ovo que ficaria estrelado em menos de um minuto. Foi esta a sentença do Toninho que durante alguns dias teve dificuldade em se sentar sem que soltasse um ai, ao mesmo tempo que esfregava a nádega.

E a penca dela? Vocês já viram aquilo? E isto palavras do Raul que sentia a mágoa bem aflorada na espécie de formigueiro que se lhe percorria quase metade do seu corpo, com especial destaque para a zona do estômago até ao peito, e a explodir na zona da garganta, sempre que se lembrava da vara e da sensação de dor cortante que esta lhe provocara. Com uma penca daquelas não precisa de cana para pescar, basta que se lhe enlace um cordel na ponta. Esta mágoa habitava pela zona do peito do Raul, mas como era um rapazinho cheio de imaginação e humor, nem ele mesmo, apesar de por vezes se esforçar nesse sentido, era capaz de resistir a soltar uma gargalhada como resultado das coisas que dizia. Como esta da penca. Só o simples facto de ter arranjado um sarcástico nome para o nariz da mulher do lavrador, era para si já um motivo de divertimento, e a juntar a esse momento de fértil imaginação, aplicar-lhe com uma comparação à cana de pesca, então aí, por muito mauzinho que quisesse soar, não podia, não era capaz de ele mesmo resistir a uma boa gargalhada, que era apesar de tudo, reforçada em uníssono por todos os outros amigos.

Esta pequena anomalia no nariz da mulher do lavrador já o franzino Raul lha havia notado. Uma ligeira curva na ponta que nunca antes lhe merecera qualquer reparo mais crítico pois que de tão ligeira a dita curva quase se lhe passava despercebida. Mas depois as vergastadas nas nádegas ali tão à mão de semear, nuas e cruas, dolorosas e de certa maneira um pouco humilhantes uma vez que, apanhado sem as calças na mão, teve que dançar completamente nu ali à frente da mulher do lavrador, numa aflição desmedida tentando por todos os meios proteger o pirilau com as palmas das mãos deixando sem qualquer hipótese o rabiote entregue à sua própria sorte, que como já se teve a oportunidade de constatar, melhor sorte não teve do que a de levar com uma vara que por vezes até lhe cortava a respiração.

-Ai ó senhora a gente só quer a roupa para se vestir e ir embora…

E o raio da mulher, que como já se disse, parecia estar a tirar algum divertimento e satisfação sarcástica de toda esta teatrada, quanto mais se lhe implorava por clemência mais ela procurava pela melancia com a falta de uma talhada no meio, para lhe disferir os seus golpes de vara.

Foi por essas e por outras que o pequeno Raul começou por descobrir a partir daí dimensões e formatos no nariz da mulher do lavrador nunca antes tão evidentes, e mais tarde, como já se disse, tirasse uma vingança que desejou fosse cruel, batizou-lhe o nariz com o nome de penca.

Para o Diogo a mulher tinha indiscutivelmente cara de “jalvota”, fosse qual fosse o significado que a palavra tinha, se é que tinha algum, e o cabelo desordenado, seboso e enrolado em pequenos e estranhos enchumaços dispersos pela cabeça, era o resultado da muita massa meada com feijão e carnes gordurosas de porco que ela tem vindo a consumir ao longo de grande parte da sua vida.

Os rapazes riram tanto que por momentos a dor das chibatadas que lhes havia marcado as nádegas e ao mesmo tempo despoletado tão fértil imaginação, quase desapareceu.

Mas o Diogo foi ainda mais longe. Colocou o ar mais sério e dramático que lhe foi possível colocar e afirmou sem um único pestanejar de olhos, que era voz corrente na vila, de que a mulher do lavrador fazia exorcismos e trabalhos de feitiçaria, o que de certa maneira, atestava quase como um certificado a teoria do Raul acerca do nariz curvado na ponta, que tanto lhe serviria para trabalhos piscatórios, como bruxaria, muito embora, apesar do ar de dramática surpresa com que os rapazes quase deixaram cair os queixos de encontro ao peito, nenhum deles jamais ouvira semelhantes afirmações pelas redondezas.

Mas, uma vez mais se prova, que mesmo de tenra idade como eram estes rapazes de orgulho ferido e nádegas a ferver e fumegar, uma mente em fúria acredita nas próprias histórias que ela mesmo cria, e por essa razão o imaginário torna-se real.

O frenesim dessa tarde só podia ser comparado ao final de um grande espetáculo de circo. Falamos obviamente de uma mesma atmosfera, uma mesma explosão de sentimentos que de uma ou outra maneira mexe com uma adrenalina efervescente, muito embora num e noutro caso, os motivos que fazem pular o coração de maneira frenética, sejam diferentes.

No final de um grande espetáculo de circo vem à pista desfilar ao som dos trombones, clarinetes e tambores, os artistas, os animais, tudo envolvido numa espécie de quadro de variadas cores e sons que fazem da noite e do espetáculo um raro e contagiante momento de alegria e magia, e o público que com entusiasmo acompanha o som da música, com o bater das palmas, absorve também com a mesma intensidade toda essa atmosfera que essas mesmas cores e sons vão provocando e deixam-se envolver em alegria que não só os faz sentir vivos, mas também os faz sonhar naquele momento.

Comparar esses momentos finais de um espetáculo de circo, ao que se passara ali junto da poça naquela tarde é apenas ajustar alguns pontos nos acontecimentos que em certos momentos pouco ficaram a dever a atos de um verdadeiro circo. As acrobacias eram idênticas especialmente quando os rapazes tinham a dupla tarefa de tentarem apanhar a roupa e ao mesmo tempo fugir da vara. Como se isso não bastasse, o embaraço de andarem para ali todos nus a saltarem numa espécie de dança de culto paranormal, tapando com uma mão o pirilau e com a outra o mais que pudessem com ela proteger o rabo das vergastadas. E o raio da mulher do lavrador que tinha a mania de lhes comparar o rabiote com uma melancia, apesar de tudo pequena, onde lhe faltasse uma boa talhada. E ria-se, se é que estarrincar os dentes à medida que entortava a boca para morder ao de leve o lábio inferior, se pode chamar riso.

Mas quem não ria era o Mário. Esse sim, o único que não fugia da vara, enfrentando antes a mulher do lavrador, sem nunca lhe virar as costas, sem nunca dançar à sua frente para se proteger da vara, sem sequer se preocupar em esconder o pirilau.

Por esse ato de destemida bravura, e o Mário era assim, achasse ele que a razão estava do seu lado e nada havia que o movesse, esse ato meio heroico meio louco, valeu-lhe o dobro das vergastadas, e para se contar a história da maneira mais justa que seja possível descrever, não vamos afirmar que o Mário foi o único que não dançou em frente da mulher do lavrador. Como não se protegia, como levava o dobro da pancada, como qualquer herói que se preze, se resistisse à primeira vergastada na melancia, a muito custo admite-se, na segunda já não podia evitar um salto e um ai, que tanto um como o outro eram executados quase de maneira automática. Diz-se que quem tem cu tem medo, mas no caso do Mário, o cu não lhe servia para desmascarar o medo, porque a teimosia e a convicção conseguiam superar esse sentimento, mas não se livrava de dar um salto que era a sua maneira de reagir à dor. Razão para que, no caso do Mário, se ajuste o dizer popular de que quem tem cu tem medo, para quem tem cu, salta…

(Excerto do capítulo 2 do livro em construção)

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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