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Os meus amigos na Ucrânia ainda estão bem*

Quando soube que as tropas russas estavam a invadir a Ucrânia pensei logo nos meus amigos que tenho no país.

Apenas em 2021 estive lá duas vezes. Uma para ser jurado num festival de cinema em Kiev e outra para ver um concerto inesquecível. Os The Blaze atuaram num festival num enorme espaço com dois aviões e um helicóptero e os artistas no meio da sala.

O realizador português David Bonneville, que cruzei na capital ucraniana durante o festival Molodist, onde apresentou o excelente “O último banho”, disse-me que esta sua primeira vez em Kiev lhe deixou uma impressão fabulosa. “É a nova Berlim”, assegurou-me. Roubei-lhe a definição, repeti-a à exaustão e estou cada vez mais convencido de que é verdade.

A capital ucraniana tem, como a maioria dos países que renasceram da queda do muro de Berlim, uma juventude que só conheceu as oportunidades que a liberdade e o capitalismo lhe deram. Não vou defender aqui o mercado megaselvagem da Ucrânia ou da Rússia, mas simplesmente constato que este ambiente tornou os jovens ambiciosos, corajosos e criativos. Acrescenta-se a isso uma boa formação escolar e muita abertura a todas as coisas que a internet lhes dá. O resultado é uma juventude que está muito à frente da ocidental.

Voltemos a esta semana horrenda. As notícias começaram a cair em catadupa: os russos começaram a entrar na Ucrânia, bombardearam várias zonas estratégicas, aeroportos, quarteis e sabe Deus o que mais. Comecei a pensar em todos os amigos e conhecidos que tenho naquele país, que visitei pela primeira vez para ver um rude jogo entre Portugal e a Alemanha, em Lviv (perdemos, se bem me lembro).

Desde então sinto-me bem na Ucrânia, tal como gosto imenso da Rússia. Não aprecio o lado sorumbático, distante, e mesmo agressivo dos eslavos na rua e nos comércios mas há um ambiente agradável que se respira e uma energia especial.

A primeira pessoa a quem escrevi na manhã de quinta-feira foi a Kristina, que vive em Odessa, região estratégica e apetecível. “Como estás, está tudo bem contigo e com a tua família?”. A Kristina tinha-me dito dias antes que a guerra era impossível. Ela que é russófona e se sente tão russa como ucraniana sempre achou que os irmãos do outro lado da fronteira não vão bombardear a Ucrânia, afinal são irmãos…

“Ainda estou bem”, respondeu, “mas num stress enorme, em estado de choque”.

Fiquei sem saber o que dizer. Ela escreveu mais uma frase: “Não sei o que pode acontecer, o que posso esperar, o que fazer”.

Armei-me em especialista em situações de conflito bélico. Disse-lhe para comprar comida, armazenar água e para esperar. “Espera. Tem cuidado. Fica em casa”. Noto agora que escrevi telegraficamente, como se de código morse se tratasse. Em tempo de guerra sê como um soldado, disse-me o meu cérebro.

Ela foi escrevendo ao longo do dia. Que estava em casa da mãe, numa cidade pequena onde habitualmente nada se passa, mas mesmo assim, temia “uma guerra grande” e que os russos usem Chernobyl como uma arma. “Eles já lá chegaram. É muito perigoso”.

À noite Kristina disse-me que tinha comprado um bilhete para um autocarro que a levaria até à Moldávia. “Vou com a minha mãe. O meu pai não pode viajar connosco porque tem menos de 60 anos e não o deixam sair do país”.

Estranhei que a Kristina não pegasse no carro para fugir, mas ela explicou que tem pouca gasolina no depósito e que já não há sítio nenhum onde o encher.

No dia seguinte, a Kristina e a mãe apanharam um autocarro que nada lhes garantia que viesse, mas lá acabou por aparecer. Fomos trocando mensagens ao longo da viagem. Ela estava claramente angustiada, sem saber se as deixariam passar, e quanto tempo ficariam na fronteira. Eu também não sabia, mas vi as fotos que ela foi tirando – e que podem ver acima e no vídeo abaixo – com filas de gente à espera de passar para a Moldávia, num posto de fronteira por onde nunca tinham passado tantos ucranianos num só dia.

“Já passaste a fronteira?”. Ela disse que sim e enviou mais umas fotos e uns vídeos e depois deixou de escrever. Suponho que adormeceu no autocarro, talvez o sítio mais tranquilo das últimas 48 horas.

Ao mesmo tempo que acompanhava a saga da Kristina, escrevi a outros amigos na Ucrânia. O Andriy, que vive em Kiev, respondeu-me secamente ao meu “Tudo bem contigo?”: “Olá Raúl, estou bem, e tu?”. Estranhei. Ele e a mulher é que estão na capital de um país que está a ser invadido por uma das maiores potências militares que o mundo conheceu. “Estou preocupado”, escrevi. E acrescentei “isto é de loucos”.

O Andriy reconheceu que a realidade não era a habitual “não sei o que fazer numa situação destas. É assustador”. Andriy tem 1m90 e pesa para lá de 100 quilos, nunca achei que alguma coisa o assustasse. Eu é que me assusto cada vez que entro no seu Getz com ele ao volante. Quase morro de ataque cardíaco tais são as velocidades que ele pratica no centro da cidade, naquelas avenidas de milhentas faixas de rodagem onde os ucranianos seguem sempre pelo meio.

Dei ao Andriy o mesmo conselho que à Kristina: “água, comida, etc. etc.”. Ele não respondeu e desde então só sei que está vivo porque a mulher dele, a Anastasia, tem publicado coisas no Instagram, sobretudo a queixar-se da falta de ajuda europeia ao povo ucraniano.

A Anya e a Lana partilharam exatamente a mesma imagem que a Anastasia. A Lana nem acredita na sorte que teve porque está de férias em Paris há uns dias, embora agora não saiba quando pode voltar a casa nem pode fazer nada pela família. A Anya disse-me que estava bem, que agora era a altura ideal para fazer jogging e andar de bicicleta porque não há poluição nas ruas.

“E a invasão?”, eu queria saber o que lhe ia na alma. Ela só disse que dormia mal. “Há estrondos de meia em meia hora. Eu durmo bem, mas quando a cozinha abana e os copos fazem barulho até eu acordo”. Dei-lhe o mesmo recado que à Kristina sobre a comida e a água, mas ela disse que se calhar já era tarde demais para isso porque os supermercados “ou estão vazios ou fechados”.

Deve ser isso a guerra, um confinamento como o da pandemia, mas com bombas e muito muito mais medo. Uma hora depois, a Anya publicou no Instagram uma frase roubada a alguém: “Se a Rússia parar de lutar, a guerra acaba. Se a Ucrânia parar de lutar, a Ucrânia acaba”.

Mandei-lhe um emoji com uma lágrima, abri o computador e comecei a escrever este texto que dedico a todos os ucranianos.

Raúl Reis

*mas alguns já não estão lá.

https://www.facebook.com/grupobomdia/videos/1106653663458061

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