A deportação de migrantes e requerentes de asilo para o Ruanda é um sinal de regressão e decadência moral do Reino Unido, que sempre acabou por aprovar no parlamento uma lei muito polémica que transforma em seguro um país que o Tribunal de Recurso britânico considerou inseguro, tentando assim contornar a lei nacional e os tratados internacionais em matéria de direitos humanos, o que constitui uma grave desvalorização da ética internacional.
Além da gravidade desta situação em termos humanitários para os requerentes de asilo, a insistência na deportação de migrantes ilegais para um país sem condições constitui um claro atropelo da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, da qual o Reino Unido é signatário.
O país transfere assim para o Ruanda a análise e decisão sobre os pedidos de asilo, com a obrigação de acomodar os migrantes e providenciar os meios de sobrevivência e integração no caso de serem aceites. O grande problema é que o Ruanda está longe de ser uma referência no respeito pelos direitos humanos e em termos de desenvolvimento económico e social.
O país situa-se em 160.º no índice de desenvolvimento humano e tem 40% da população a viver no limiar de pobreza. Além disso, tem no seu território cerca de 135 mil refugiados que vivem em condições precárias em campos, onde muitos aguardam há anos uma resposta aos seus pedidos de asilo. Por outro lado, várias organizações internacionais são muito críticas do regime do general Paul Kagame, que governa o país com mão de ferro há 24 anos, com acusações de violação reiterada dos direitos humanos, perseguições políticas, execuções extrajudiciárias, mortes em detenção, desaparecimentos forçados e tortura. Em 2018, a polícia ruandesa disparou contra refugiados que se manifestavam, causando a morte a, pelo menos, 12 pessoas.
A decisão agora tomada pelo Reino Unido é ainda mais chocante por vir de um primeiro-ministro descendente de imigrantes e defendida fervorosamente por antigas ministras igualmente descendentes de migrantes, como Suela Braverman ou Priti Pattel. E isto não apenas por ser uma ofensa aos direitos fundamentais e à dignidade humana, mas também pelo que revela de ausência de empatia e humanidade e de negação do que as suas próprias famílias e povos viveram enquanto migrantes.
O Reino Unido começou a endurecer as políticas anti-imigração já no tempo em que Theresa May era ministra do Interior, há uma dezena de anos. O referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia, como resposta à subida dos partidos extremistas e antieuropeus, como o UKIP e o BNP, só agravou a situação dos migrantes. Até o Partido Conservador, que sempre se inscreveu nas famílias politicamente decentes, não obstante o seu ultraliberalismo, se transformou num partido nacionalista, de características extremistas, com as consequências trágicas que se conhecem, como a saída da União Europeia, que hoje muitos britânicos lamentam.
Esta obstinação do Reino Unido é uma grande desilusão vinda de um país cosmopolita e que teve um vasto império, o que lhe dá obrigações morais incompatíveis com esta regressão em matéria de direitos humanos. E, claro, constitui um péssimo exemplo e um precedente muito perigoso que pode impulsionar outros países a procederem da mesma forma. E o mais certo é que os objetivos de dissuadir outros migrantes de atravessar o Canal da Mancha nem sequer venham a ser alcançados, como referem responsáveis da área das migrações.
Este é mais um sinal preocupante de regressão nos valores humanos no mundo, no direito internacional e a ética que lhe está subjacente, muito preocupante vindo de um país inÇuente como é o Reino Unido. A somar a uma desvalorização sem precedentes dos valores e princípios da Carta das Nações Unidas, ao enfraquecimento das instituições multilaterais, à subida dos extremismos e nacionalismos e aumento da tensão a nível global.
O mundo está cada vez mais sem rumo.