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O legado português no cemitério judaico de Hamburgo

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O cemitério judaico-português de Hamburgo é um exemplo extraordinário da presença portuguesa no mundo, onde a história confirma a conhecida capacidade de adaptação dos portugueses aos contextos e situações mais inesperados.

Construído em 1611, e onde foram registadas mais de 1500 sepulturas, segundo algumas fontes, o cemitério foi oficialmente encerrado há quase um século e meio e é hoje um lugar de visita intenso e o mais antigo da cidade e do norte da Europa. Passa-se o portão que o protege e o visitante é logo envolvido pelas árvores altas e dispersas que dão sombra e frescura às lápides com inscrições em português, outras em hebraico, muitas com um véu de fuligem e musgo, umas tombadas outras na vertical.

Fugidos de Portugal por causa da Inquisição no final do século XVI, os cristãos novos foram bem aceites em Hamburgo, onde encontraram um lugar para viver, sem terem de esconder a sua religião e rituais judaicos. Situado então numa das zonas mais nobres da cidade, o nome da rua, Königstrasse, Rua dos Reis, é disso mesmo um reflexo.

O terreno foi adquirido pelos comerciantes portugueses André Falero, Ruy Cardoso e Álvaro Dinis, que conquistaram as graças do soberano e assim conseguiram que “a nação portuguesa pudesse sepultar os seus defuntos”, os judeus sefarditas, segundo o pequeno livro Arquivos de Pedra – 400 anos do Cemitério Judaico de Königstrasse. Com a sua ação, deixaram para a posteridade um extraordinário legado, onde se encontra uma parte da História de Portugal e de Hamburgo, o que certamente terá contribuído para que esta cidade seja hoje a mais portuguesa da Alemanha, com inúmeras marcas da nossa presença, do “bairro português” apinhado de restaurantes, ao antigo navio-escola Sagres ancorado no porto, da omnipresença dos pastéis de nata, ao único busto do Vasco da Gama existente no estrangeiro.

Mais tarde, o cemitério foi ampliado com a aquisição do terreno adjacente por judeus asquenazes e alemães, onde foram sepultados membros de famílias ilustres, como a do poeta Henrich Heine ou do filósofo Mendelsson.

O cemitério resistiu à passagem dos tempos, das guerras e dos bombardeamentos de Hitler. Tal como resistiu a roubos e ao vandalismo antissemita que várias vezes o atingiu, visível em algumas lápides, partidas ou danificadas.

Em 400 anos, a erosão que atinge as lápides é visível na diluição dos contornos das letras e dos símbolos que contam brevemente a história dos defuntos, entre os quais rabinos e eruditos. Esta arte sepulcral nas lápides sefarditas é muito interessante e peculiar, não apenas devido às referências bíblicas e à vida dos falecidos, mas também porque uma boa parte dos símbolos utilizados não eram propriamente característicos do judaísmo, que proíbe a representação de figuras humanas e animais. Rosas, gansos, veados, pombas, barcos, jarras ou âncoras são alguns dos motivos que embelezam as lápides e um imaginário certamente herdado do cristianismo.

Esta transgressão está em consonância com o facto de os sefarditas serem vistos como judeus de outro tipo, mais abertos, livres, cultos. Os Arquivos de Pedra dão bem conta de como tantas famílias lusas estão tão indelevelmente ligadas à história da cidade, mas também daquilo que se reconhece como uma característica dos portugueses, que é a sua extraordinária capacidade de adaptação, o seu cosmopolitismo, humanismo e universalismo. São descritos como sendo judeus com uma ampla educação laica, que adaptava a sua origem ibérico-aristocrática de maneira natural ao seu novo mundo judeu, que se conciliava com não-judeus.

Sem nunca perderem o contacto com os familiares em Hamburgo e Altona, muitos portugueses, sobretudo os que tinham menos posses, começaram a reemigrar para outras paragens como Caracas, Jamaica, Curaçau, Barbados, Estados Unidos, Londres ou Amesterdão, dispersando-se pelo mundo e deixando sempre um rasto e um legado humano e cultural que importa não perder de vista.

Vaguear por entre as lápides e as árvores altas, por onde passam raios de luz através das folhas muito verdes do cemitério judaico português de Hamburgo-Altona é uma experiência intensa, pela energia envolvente que nos prende ao lugar e nos obriga a sentir algo de indizível, como se fosse preciso ficar mais tempo até se compreender a história daquelas pessoas, que se percebe ser tão rica, quanto inalcançável.

Paulo Pisco, deputado do PS

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