Por Decisão Arbitral de 30 de janeiro de 2023, no âmbito do Processo n.º 404/2022-T, o CAAD decidiu que a aplicação da taxa reduzida de IVA para as empreitadas de reabilitação urbana está condicionada ao enquadramento e realização das mesmas no âmbito de uma Operação de Reabilitação Urbana inseridas em Áreas de Reabilitação Urbana.
Enquadramento legal:
1)
Estão sujeitas a IVA as transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional que sejam realizadas a título oneroso por um sujeito passivo. Com efeito, e uma vez determinada a incidência, objetiva e subjetiva, deste imposto, as operações mencionadas anteriormente são (geralmente) sujeitas a tributação à taxa (normal) de 23%, podendo, cumpridos determinados requisitos, ser aplicadas a taxa intermédia, de 13%, ou outras situações a que é aplicável a taxa reduzida, de 6%.
Entre a taxa reduzida, e de acordo com a verba 2.23 da Lista I do Código do IVA, o legislador decidiu tributar, à taxa de 6%, as “Empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional”.
Para que seja possível beneficiar da taxa de IVA de 6%, é, então, necessário que se verifiquem os seguintes requisitos:
– tratar-se de uma empreitada;
– a mesma ser de reabilitação urbana; e
– os imóveis estarem localizados em área de reabilitação urbana (“ARU”).
2)
O Código Civil (“CC”) define como empreitada, de forma ampla, “o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço”.
No entanto, é necessário, para efeitos fiscais, que a mesma se consubstancie numa reabilitação urbana, conforme seguidamente se analisa.
Por forma a definir o conceito de reabilitação urbana e, bem assim, encontrar soluções coerentes entre diversos aspetos funcionais, económicos, sociais, culturais e ambientais das áreas a reabilitar, importa atender ao Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, alterado mais recentemente através do Decreto-Lei n.º 66/2019, de 21 de maio, que aprovou o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (“RJRU”).
Neste sentido, e em conformidade com o segundo requisito acima referido, o regime em apreço define como reabilitação urbana “a forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infraestruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização coletiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios”.
Este quadro legal vem, assim, estruturar as intervenções de reabilitação urbana com base em dois conceitos fundamentais: (i) o conceito de ARU, cuja delimitação pelo município tem como efeito determinar a parcela territorial que justifica uma intervenção integrada e, bem assim, (ii) o conceito de operação de reabilitação urbana (“ORU”), correspondente à estruturação concreta das intervenções a efetuar no interior da respetiva área de reabilitação urbana.
3)
De acordo com o preâmbulo do RJRU, e mediante a concretização dos conceitos já expostos, o legislador procurou, desde logo, regular os procedimentos a que deve obedecer a definição de áreas a submeter a reabilitação urbana, bem como a programação e o planeamento das intervenções a realizar nessas mesmas áreas.
Por esta razão, a reabilitação urbana deve ser entendida como política autónoma da política de ordenamento do território e do urbanismo, com princípios e regras próprios, que lhe conferem um ADN que é intransmissível a outros regimes jurídicos, gerais ou especiais, que ocupem da gestão de território.
De facto, aquele regime tornou-se num instrumento essencial de política fiscal e de contribuição articulada na prossecução de objetivos diversos, tais como o da reabilitação (i) de edifícios que se encontram degradados ou funcionalmente inadequados e (ii) dos tecidos urbanos degradados ou em degradação, ou ainda, o da (iii) promoção da sustentabilidade ambiental, cultural, social e económica dos espaços urbanos( entre outros).
Neste sentido, a aplicação da taxa reduzida de IVA às empreitadas de reabilitação urbana inseridas em ARU implica a verificação de um conjunto de pressupostos legais definidos pelo RJRU, cuja articulação tem vindo a merecer análise mais aprofundada por parte da recente jurisprudência (arbitral), que cumpre analisar.
4)
O Tribunal Arbitral foi convocado, no âmbito da Decisão Arbitral n.º 404/2022-T, de 30 de janeiro de 2023, a decidir sobre o âmbito de aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA.
Nos termos do Acórdão em análise, a Requerente, enquanto sujeito passivo de IVA, celebrou um contrato de empreitada relativo à edificação de um edifício num lote de terreno para construção.
Nesta medida, as faturas relativas às obras englobadas no contrato foram emitidas sem liquidação de IVA, tendo a Requerente autoliquidado imposto à taxa de 23% nas declarações periódicas de IVA entre 2019 e 2021.
Posteriormente, a Requerente apresentou uma reclamação graciosa das autoliquidações referidas, invocando, essencialmente, que a referida empreitada deveria ter sido considerada como sendo de reabilitação urbana, para efeitos da aplicação da taxa reduzida prevista na verba 2.23.
A reclamação foi indeferida pela Administração tributária, com base nos dois seguintes argumentos: (i) apenas se enquadram no conceito de reabilitação urbana, previsto no RJRU, as obras de construção que não impliquem construção de novos edifícios; e (ii) as empreitadas de reabilitação urbana devem ser realizadas no quadro de uma ORU já aprovada.
No tocante ao primeiro argumento, o Tribunal Arbitral entendeu (em conformidade com o Parecer junto aos autos), que “(…) o conceito de reabilitação urbana, apesar de assentar na conservação substancial do edificado (globalmente considerada a ARU) admite todo um conjunto de intervenções que tanto pode consistir na alteração e na demolição do existente, em especial quando destinado a ser substituído por novos edifícios destinados aos mesmos usos ou a novos usos, desde que pretendidos pela (alinhados com a) estratégia em vigor”.
Assim, entendeu o Tribunal Arbitral que não resulta do conceito acima referido que a construção de novos edifícios esteja excluída, por si só, da definição de “reabilitação urbana”.
No que concerne ao segundo argumento, o Tribunal Arbitral concordou com a posição adotada pela Administração tributária.
Segundo o mesmo Acórdão, a “(…) característica da “reabilitação urbana” consubstanciar uma “intervenção integrada sobre o tecido urbano existente” obstará a que possa ser enquadrada em tal conceito qualquer construção de edifício novo não inserida num “conjunto articulado de intervenções visando, de forma integrada, a reabilitação urbana de uma determinada área”, isto é, que não se integre numa “operação de reabilitação urbana”.
5)
Neste sentido, o Tribunal Arbitral considera que o mero licenciamento de uma construção através de uma empreitada realizada em ARU, sem que exista a aprovação de uma ORU que a enquadre, não permite qualificá-la como sendo de reabilitação urbana para efeitos da aplicação da verba 2.23 e, bem assim, da taxa reduzida de IVA.
Não obstante, pese embora a Administração tributária tenha entendido que a Requerente no Processo Arbitral devia ter apresentado uma declaração da Câmara Municipal que certificasse que a construção verificada se consubstanciava numa ORU, o Tribunal Arbitral considerou que não lhe assiste razão, porquanto verificou que fora aprovada a ORU para a delimitada ARU, onde se verificou a construção.
O Tribunal Arbitral considerou, ainda, que não há motivos para crer que o licenciamento da construção não tenha sido efetuado no âmbito da ORU aprovada para a área onde foram efetuadas as obras.
Em face do exposto, o Tribunal Arbitral julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada e, bem assim, anulando (parcialmente) as autoliquidações de IVA, na parte em que excederam o que resulta da aplicação da taxa de 6%, tendo condenado a Administração tributária no pagamento do reembolso da quantia paga em excesso e de juros indemnizatórios.
Não obstante o exposto, cumpre referir que o sentido da Decisão Arbitral ora analisada se manifesta incompatível com uma Decisão Arbitral anterior, e que se analisa seguidamente.
6)
No âmbito desta Decisão Arbitral n.º 137/2022-T, de 22 de julho de 2022, o Tribunal Arbitral foi convocado para determinar se a empreitada de reabilitação e conservação realizada num determinado edifício reunia as condições legais para que fosse liquidado IVA à taxa reduzida de 6% sobre o valor total da empreitada, em conformidade com a verba 2.23 previamente referida.
A Administração tributária encontrava-se a fazer depender a aplicação da referida verba mediante o cumprimento de cinco condições, a saber: (i) enquadramento da obra na definição de reabilitação urbana; (ii) o imóvel, alvo de intervenção, localizar-se em zona legalmente delimitada como ARU; (iii) existência de comunicação prévia e respetiva aprovação de licenciamento pelo município ou entidade gestora; (iv) os serviços prestados terem a natureza de empreitadas “gerais”, não abrangendo os meros fornecimentos de bens e aquisição de materiais nem a aquisição de outros serviços não abrangidos pelo contrato de empreitada geral; e (v) a fatura dever indicar o dono da obra e a área de reabilitação urbana onde se localiza, contendo ainda a denominação usual dos serviços prestados com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável.
Pese embora não tenha sido invocado pela Administração tributária, o Tribunal Arbitral entendeu que o conceito de ORU não foi considerado pelo legislador na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, para efeitos de determinação da taxa reduzida de IVA.
Em paralelo, e atendendo à documentação apresentada pelas Requerentes, a respeito dos bens imóveis que beneficiaram das obras reabilitação urbana, o Tribunal Arbitral entendeu que não se demonstrava necessário obter a prévia apreciação e aprovação do respetivo pedido de licenciamento por parte da entidade competente, sob pena de uma condição semelhante violar o princípio da legalidade tributária, previsto na Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal Arbitral estabeleceu, ainda, por último, a diferença entre “reabilitação urbana”, já previamente aqui analisada, e a “reabilitação de um edifício”, igualmente prevista no RJRU, na medida em que esta última se consubstancia “(…) na forma de intervenção destinada a conferir adequadas características de desempenho e de segurança funcional, estrutural e construtiva a um ou a vários edifícios, às construções funcionalmente adjacentes incorporadas no seu logradouro, bem como às frações eventualmente integradas nesse edifício, ou a conceder-lhes novas aptidões funcionais, determinadas em função das opções de reabilitação urbana prosseguidas, com vista a permitir novos usos ou o mesmo uso com padrões de desempenho mais elevados, podendo compreender uma ou mais operações urbanísticas”
Em face do exposto, o Tribunal Arbitral decidiu declarar ilegais e, consequentemente, anular os atos de autoliquidação de IVA constantes das declarações periódicas de imposto relativas ao terceiro e quarto trimestre de 2019 por incorreta aplicação da taxa normal de imposto de 23% em detrimento da taxa reduzida de 6%, prevista na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA.
7)
Num momento em que o tema da habitação em Portugal está em discussão pública (cfr. Pacote Mais Habitação), entendemos que estas duas decisões da jurisprudência devem contribuir para o esclarecimento dos regimes legais aplicáveis, em particular no âmbito da aplicação da taxa reduzida de IVA para as empreitadas de reabilitação urbana.
De facto, e atendendo ao teor da referida Decisão Arbitral n.º 137/2022-T, a Administração tributária não poderá exigir o cumprimento de requisitos que não estão previstos na lei.
Neste âmbito, e atendendo também à primeira Decisão Arbitral n.º 404/2022-T, cumpre apontar a relevância do RJRU, quando, expressamente, determina, como efeito da delimitação de uma ARU, a concessão “(…) aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos o direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável (…)”.
Neste sentido, também a doutrina concebe, à partida, que as empreitadas de reabilitação urbana sejam incluídas na lista dos bens e serviços sujeitos à taxa reduzida de IVA, desde que, entre outros requisitos, se trate de “empreitadas de reabilitação urbana realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos tempos legais, ou [sublinhado nosso] no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional”.
Existem, assim, atualmente e em conclusão, duas Decisões Arbitrais que coincidem no entendimento relativo à adoção do conceito amplo de reabilitação urbana em sede da aplicação da taxa reduzida de IVA.
Não obstante, consideramos que subsiste ainda uma aparente contradição nas Decisões Arbitrais, relativamente à necessidade de aprovação de ORU, para efeitos da aplicação da taxa reduzida de IVA às empreitadas de reabilitação urbana, implicando alguma incerteza, indesejável, junto dos contribuintes e da própria Administração tributária.
Assim sendo, e muito embora entendamos que o conceito de ORU não foi o considerado pelo legislador na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, para efeitos de determinação da taxa reduzida de IVA, essa dúvida deveria ser esclarecida, em definitivo, pelo próprio legislador, porventura com efeitos interpretativos (e, assim, retroativos).
A este respeito, o legislador propõe, no âmbito da Proposta de Lei PL 64/XXIII/2023, de 03 de março de 2023, a revogação da atual verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA e, bem assim, a consagração de uma nova verba com referência a “empreitadas de reabilitação de edifícios”, ao invés de “empreitadas de reabilitação urbana”.
Entendemos, por isso, que esta poderá ser uma alteração relevante no que respeita ao tema da reabilitação urbana, cumprindo acompanhar os seus ulteriores desenvolvimentos.
Lisboa, 06 de março de 2023