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O Concílio dos Dias

“Enquanto comiam ovos com presunto, aqueles cavalheiros sorridentes decidiam” como é que o Presidente da República Francesa e o Czar iam morrer. É assim que G. K. Chesterton descreve a programação das actividades de um grupo de anarquistas, comandado por Domingo, na sua obra “O homem que era Quinta-feira”. Neste caso, opinavam se o atentado deveria ser feito à bomba ou com um punhal. Foi firme a decisão de que seria com dinamite, pois “expande-se, e só por isso destrói. Também o pensamento só expandindo-se é que destrói”.

Domingo é o presidente do Conselho Central Anarquista, composto por sete membros, “que tomam os nomes dos dias da semana”. Segunda-feira “desempenhava o cargo de secretário do conselho (…) e o seu torcido sorriso” apenas era ultrapassado pelo do presidente dos anarquistas. O seu rosto parecia marcado pela doença, mas não. Sofria de “uma tortura intelectual” e cada pensamento que tinha era como se uma espada lhe atravessasse o corpo. Terça-feira destacava-se pela sua mania da conspiração e não levava jeito nenhum para disfarces. Era acusado de envergonhar a causa anarquista e de ser inútil. Como dissera uma vez, com benevolência, o presidente: “(…)Você esconde tanto como qualquer outro, a questão é que não o sabe fazer porque é um grande asno!”. Quarta-feira era um Marquês cuja única extravagância era usar fatos elegantes como se, “de facto fossem dele”. Seria ele a executar o atentado contra o Presidente da República Francesa e o Czar.

Um professor ocupava o lugar de Sexta-feira e a sua avançada idade mostrava que a qualquer momento esse dia ficaria vago. A senilidade era já visível, com “as rugas finais do desespero”. Sábado, “o mais simples e desconcertante de todos”, era um jovem médico, baixo e carrancudo, que usava um sorriso permanente. “Assim, não se podia decifrar aquela cara, não se podia dizer o que significavam o seu sorriso ou a sua seriedade. Parecia ser o pior daqueles homens e todos estes seis homens tinham jurado destruir o mundo”. Também era ele que se servia das melhores coisas que havia à mesa. Ele e o Marquês.

Mas e Quinta-feira? Quem era o Quinta-feira? Era um poeta-polícia ou polícia-poeta, de nome Syme, que foi eleito Quinta-feira pela mera coincidência de ter conhecido um poeta-anarquista ou anarquista-poeta, Gregory, forte candidato a ocupar a vaga deixada pelo anterior Quinta-feira, morto “devido à sua confiança numa mistura higiénica de giz e água que tomou em substituição do leite, pois considerava esta bebida bárbara, por ser uma crueldade para a vaca”.

Syme, o polícia mais tarde eleito para o conselho dos anarquistas, tinha um profundo desprezo pela ideia de revolução. Era um homem sincero e humilde. “E é o humilde que fala demais, o orgulhoso está constantemente a observar-se. Defendeu a respeitabilidade com violência e exagero, apaixonou-se no elogio do arranjo e do anseio”.

Das discussões entre ambos, logo no início do livro, percebemos que Syme tem uma forte convicção sobre a importância da lei e da ordem e, no entanto, um profundo respeito pela seriedade da fé dos anarquistas na mudança e no despertar “de uma verdade abandonada”. Mas foi a vaidade e a radicalidade do poeta-anarquista a fazer eleger Syme. Chega a dizer-lhe: “Eu era capaz de quebrar vinte juras só pelo prazer de o rebaixar” e quantos de nós já conhecemos “poetas-radicais” assim, que não são nem poetas nem radicais, porque simplesmente não percebem o que é a radicalidade? Para quem é estranha a radicalidade enquanto raiz dos problemas. Que defendem uma igualdade que os transforma em maiores do que os iguais? Basta um tique, uma sombra ou simplesmente existir para que estes pretensos candidatos a Quinta-feira não consigam esconder que a mera forma “que você tem de acender um charuto faria um padre trair o segredo da confissão.”

Por mais que se queiram dissimular como tolerantes, estes tipos de candidatos enganam os seus. Gregory disfarçou-se de bispo, milionário, major, até que se viu obrigado, por conselho pessoal de Domingo – o homem que “emprega todo o seu génio em passar despercebido”, a assumir o que o poeta-anarquista nunca poderia ocultar: uma contínua dissimulação. Ele que não percebeu que “atingir o alvo, eis a coisa rara e estranha; falhá-los é reles e vulgar”. Gregory pediu a Syme para o acompanhar a uma reunião onde supostamente seria eleito, mas o seu discurso moderado, ao saber cinco minutos antes por jura de segredos que Syme era polícia, levou a que este último fosse eleito, com o engenho intelectual de meia-verdade ou meia-mentira discursiva, com a séria convicção de que o combate seria feito por dentro daquela estrutura ideológica e política. A sua forma simples de ver o mundo cativa o leitor. É nesta captura de verdade que percebemos que “(…) há muitas espécies de sinceridade e hipocrisia. (…) Pode ser apenas meia verdade, um quarto de verdade, mas acontece-lhe dizer mais do que quer à força de o pretender”. Syme sabia o que a plateia queria ouvir. Com a maior das displicências afirma-se não como homem, mas como uma causa. E uma vez eleito não fez por menos. Tanto era Quinta-feira, como polícia que persegue os anarquistas. Uma vez fora deste círculo dos eleitores, do “parlamento diabólico” como lhe chama, não renega as suas origens. Assume-se como “revolta contra a revolta” e lembra “um dos seus tios (que) passeava sempre sem chapéu” e um outro que “fizera uma tentativa, mal sucedida, de passear com o chapéu e sem mais nada”.

Syme, o agora eleito Quinta-feira, tivera de procurar o equilíbrio entre a realização de si próprio e a simplicidade. Foi assim que descobriu que “há hoje tanta “relação entre o crime e o intelecto”. Uma força especial da polícia tinha sido criada: o polícia filósofo. São estes homens que detectam a “guerra perpétua (declarada) ao ignorante e ao desesperado (…) e a presunçosa concepção (…) de que os criminosos são os sem educação.” Os homens mais perigosos são os que “não acreditam que o crime criou o castigo, mas sim que o castigo criou o crime.” Estes homens querem o fim do mundo tal como o conhecemos e não estou assim tao certa se não há alguma razão nisto.

Adiante. Syme tinha agora a dupla identidade de anarquista à quinta-feira e nos restantes dias era polícia de ideias. Nada equilibrado em sete dias que tem a semana. No entanto, intimamente, “quase não tinha sombra de dúvida que, de qualquer forma silenciosa e extraordinária, Domingo descobrira que ele era um espião”. E, por uma outra razão qualquer, tinha a memória de nunca denunciar a promessa feita ao Quinta-feira preterido, Gregory, o poeta-anarquista. É difícil denunciar aqueles que, um dia, foram nossos amigos.
Das diversas peripécias que envolvem os homens de todos os dias da semana destaco o momento do Acusador (capítulo XV). Subindo, de forma crescente dos dias da semana, sete cadeiras seriam ocupadas.

Parecia que subiam aos seus tronos mas a cadeira central ficou vazia. Finalmente, chegou Domingo e no “Concílio dos Dias” percebeu-se que o nosso “pai e amigo, (foi) também o nosso maior inimigo.”. Domingo combatia dos dois lados, o que significa que combateu a si mesmo. “Porque haveis-me deixado aproximar demasiado do Inferno?”, perguntava Sexta-feira, o Professor. “E houve um dia (…) em que os filhos de Deus compareceram perante o Senhor, e com eles vinha também Satanás”.

Boa leitura!

 

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