De que está à procura ?

Colunistas

O afundamento dos valores europeus no Mediterrâneo

Há algo de muito perturbador na forma como os migrantes que chegam através do Mediterrâneo Central são tratados pela União Europeia e pelos países costeiros. Para as autoridades comunitárias, italianas, maltesas (ou gregas), o importante é que os migrantes não cheguem aos seus países. Interessa pouco se morrem pelo caminho, se são vítimas de tracantes e das máas, de exploração sexual, de trabalhos forçados ou extorsão, se passam fome e sede, se são torturados ou mortos, se são postos em prisões miseráveis, se os direitos humanos são espezinhados.

Em Lampedusa, o cemitério deixou de ter espaço para os habitantes da pequena ilha, porque é ocupado pelos migrantes que morrem no mar por afogamento,

desidratação, hipotermia ou por intoxicação pela inalação do fumo dos motores. Paradoxalmente, é uma ilha paradisíaca com águas cálidas e cristalinas onde os turistas se deliciam, as mesmas onde tantos barcos se afundam e onde tantos corpos e sonhos desaparecem para sempre.

Se o tempo estiver de feição, os barcos chegam quase todos os dias a Lampedusa ou à Sicília e com frequência há mortes, embora nas notícias apareçam apenas as grandes tragédias. Num dos dias em que lá estive com uma delegação da Comissão dos Migrantes e Refugiados da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, chegaram dois barcos, um proveniente da Líbia, com 72 pessoas do Bangladesh, Egipto e Síria, e outro proveniente da Tunísia, com 20 tunisinos. No dia seguinte chegou outro barco, com 96 migrantes, entre eles vários menores. Mas as autoridades italianas estão satisfeitas com o que dizem ser uma redução das chegadas.

No barco que vi chegar ao Porto de Lampedusa no dia 17 de Setembro à noite, proveniente da Líbia, que é uma rota mais perigosa, longa e cara, os migrantes saíam sem nada, em silêncio, com o olhar perdido, descalços, cheios de sede e fome. A equipa médica que acompanhava o desembarque

disse que os migrantes estavam com intoxicação sanguínea, devido à inalação do fumo do gasóleo tracado com substâncias proibidas na Europa. Quatro tinham morrido intoxicados.

Há tantas questões que se levantam com estas situações, mas há uma particularmente perturbadora: por que razão a União Europeia continua a conar às autoridades líbias e tunisinas o destino de milhares de migrantes, sabendo da corrupção estrutural que existe, da violação grosseira dos direitos humanos, com relatos de brutalidade, incluindo tortura, execuções e violência sexual?

Os relatos dos migrantes que passam pela Líbia são lmes de terror. Não interessa se são menores, mulheres ou adultos. A grande maioria é vítima de maus tratos e violência por parte dos tracantes, das milícias e dos próprios agentes de segurança, nas prisões ou fora delas. Muitos dos que são presos quando chegam à Líbia ou à Tunísia têm de pagar aos polícias somas que podem chegar aos 5000 euros para serem libertados ou postos num barco, o que leva a que as suas famílias sejam chantageadas. Se não arranjarem o dinheiro, podem ser mortos e nunca ninguém o saberá.

Os Médicos Sem Fronteiras, a Amnistia Internacional e as Nações Unidas não param de insistir sobre as atrocidades da Líbia, em terra e no mar, sem grande sucesso. Tudo indica que também as organizações criminosas que operam a partir da Tunísia estão a car cada vez mais como as que estão na Líbia, porque os milhões de euros que rende o tráco de migrantes está a tornar o negócio cada vez mais selvagem.

Entre 2015 e 2022 a União Europeia entregou à Líbia qualquer coisa como 700 milhões de euros e a Itália de Giorgia Meloni reforçou o apoio à Guarda Costeira para combater mais ecazmente a imigração. Portanto, fecham-se os olhos a todas as atrocidades e desumanidade, porque a única coisa que interessa é impedir os migrantes de pisar solo europeu. Mas isto é inaceitável, tal como é inaceitável que se mantenham os acordos de cooperação com a Líbia e a Tunísia para controlar as migrações no Mediterrâneo, onde também, assim, se afundam os valores europeus.

Paulo Pisco

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA