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Não me obriguem a vir para a rua

Decorria o ano de mil novecentos e noventa e qualquer coisa.

O Carlos Diogo um dia perguntou-me: porque não fazes um programa na rádio Felgueiras. E eu pensei no assunto e fiz.

Nessa altura a rádio era considerada pirata, o que, soando-me a ilegalidade era um incentivo extra para fazer parte da equipa de outros piratas jovens como eu, na idade do contra e da contestação. Mesmo assim, fui sempre um contestatário, mas daqueles que fazem pouco ruido com as orelhas, e as minhas contestações feitas através dos programas de rádio e de alguma escrita, depressa se esfumavam com a mesma rapidez com que surgiam.

Sendo assim, apresentei um projeto que dava especial destaque a poetas e escritores portugueses, tudo muito bem misturado com muita música uma vez que o programa seria para ir para o ar às sextas-feiras entre as 20 e as 22 horas.  Dei-lhe o nome de “Musica e Letras”.

Comecei então a fazer pesquisa acerca dos nossos poetas e escritores, a apresentar uma resumida biografia de cada um deles, a ler excertos de poemas e textos que na minha opinião mais os definiam, ou pelo menos que a mim mais me haviam marcado.

Escritores e poetas como, José Saramago, Fernando Pessoa, Fernando Namora, Soeiro Pereira Gomes, Branquinho da Fonseca, Florbela Espanca, Miguel Torga, Manuel da Fonseca, A. Garibaldi, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e muitos outros.

A tarefa não era tão fácil como se possa pensar. Nessa altura não se tinham as informações à distância de um clique, e o melhor amigo do homem ainda era o cão e não a google.

Um dia, depois de ler um pequeno texto de Miguel Torga passei uma música de Zeca Afonso. Gostava imenso da voz de Zeca Afonso e da simplicidade da sua música que apesar de tudo me soava como única. Nesse dia deveria estar com um dos meus raríssimos momentos de concentração porque nessa música em particular, a letra chamou-me a atenção como não o tinha feito antes,

“Quando a corja topa da janela

O que faz falta

Quando o pão que comes sabe a merda

O que faz falta (…)

Quando nunca a noite foi dormida

O que faz falta

Quando a raiva nunca foi vencida

O que faz falta (…)

Depois, ainda nesse mesmo programa, num outro intervalo de filosofias literárias voltei a passar mais uma música de Zeca e a deitar uma especial atenção à letra.

“Negro bairro negro

Bairro negro

Onde não há pão

Não há sossego”

E a partir daí mais do que ouvir a voz melódica de Zeca Afonso, comecei a ouvir o significado das suas letras, a mensagem que delas nos passava.

“Onde o vento cortou amarras

Largaremos pela noite fora

Onde há sempre uma boa estrela

Noite e dia ao romper da aurora

Vira a proa minha galera

Que a vitória já não espera (…)”

Ou

“No chão do medo tombam os vencidos

Ouvem-se os gritos na noite abafada

Jazem nos fossos vítimas dum credo

E não se esgota o sangue da manada.

Eles comem tudo, eles comem tudo

E não deixam nada (…)”

E, um belo dia, suspirei, porque os belos dias são aqueles em que suspiramos ao constatar que são as coisas simples da vida que nos fazem regozijar o coração e amar a vida, apesar de todas as incongruências que ela tem, e pensei… porra, este homem não é só um grande cantor de intervenção, é também um poeta capaz de trazer na voz todas as palavras de um povo sofrido, oprimido e amordaçado. E então percebi que Zeca Afonso era o poeta que me faltava falar no meu programa.

É certo que nessa altura ele já tinha falecido, mas Camilo Castelo Branco havia falecido há bem mais tempo e isso não me impediu de lhe dedicar um programa. O escritor ou o poeta parte, mas as palavras que deixou registadas, ficam.

José Afonso apesar de ser um grande poeta tinha também a rara particularidade de através do seu talento para a música dar voz melódica às suas poesias.

Era um homem tímido, modesto, inteligente.

O programa “Música e Letras” ia para o ar há mais de dois anos e tinha um punhado de ouvintes que o acompanhava com alguma assiduidade. O programa era a conjunção de duas paixões minhas que perduram até aos dias de hoje, a música e a literatura.

O “Música e Letras” dessa noite longínqua do ano de mil novecentos e qualquer coisa, dedicado ao grande trovador, mas acima de tudo enorme poeta, José Afonso, foi muito bem-sucedido e até apreciado.

Apesar de ser o meu programa, a ideia de fazer esse especial Zeca Afonso nasceu da minha paixão pelas letras e pela música, e o saudoso Zeca Afonso tinha essas duas características únicas.

Tanto quanto julgo saber, a associação José Afonso, núcleo de Setúbal, tem arquivado esse programa uma vez que contou com depoimentos de figuras públicas portuguesas que de certa maneira estavam ligadas a José Afonso, como a atriz Maria do Ceu Guerra, o encenador do teatro a Barraca, Hélder Costa, Eduardo Luís Cortesão, professor catedrático de psiquiatria, Otelo Saraiva de Carvalho, Sérgio Godinho, entre outros.

Sem descorar o excelente trabalho na recolha destes depoimentos, do meu recente colaborador do programa, ninguém, penso eu, na associação José Afonso, sabe que este programa, “Música e Letras” dedicado àquele que foi uma referência e um símbolo de liberdade, e por quem eu sempre tive uma grande admiração, é(ra) o meu programa, que nessa altura assinava como Oliveira Magalhães. Como sou um rapazinho muito modesto, deixo que outros colham os louros enquanto eu fico sossegado e ignorado num cantinho…

“Não me obriguem a vir para a rua gritar

Que é já tempo d’embalar a trouxa e zarpar

Bem me diziam

Bem me avisavam como era a lei

Na minha terra quem trepa no coqueiro

É o rei.

António Magalhães

 

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