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Mena

Naquela medida, havia o Nada. Deus, Padre Eterno, quis que houvesse mais. Disse ao Nada: “Sê!” – e houve mundo. Do cabo da sua divindade, sonhando ir além do absoluto, criou a finitude (sem umbigo nem sobrenome) e, para cobri-la, duas folhas de figueira. No parapeito dos Céus, sete coros de anjos – todos convenientemente alados, com caracóis dourados e bochechas rosadas – reclinaram a cabeça (que, por grande, lhes servia de corpo inteiro) sobre aquele barro amassado com saliva divina no pó do chão vindo do Nada. Revolveram os olhos em desalinho resignado e suspiraram. Assim, saciado o Eterno com a criação do Fim, deixou que este se multiplicasse em povos de condição diversa. O Fim (querendo, também ele, mais) ousou ser criador. Criou a desigualdade, deu-lhe sucessão e custo à dimensão da sua pequenez.

Na vida que ensinaram a João existiam três ordens de gente: os abastados, os remediados e os tristes. João dizia-se remediado: filho de remediados e neto de três remediados e uma triste. Era um novo-remediado, mirado de soslaio pelos remediados estabelecidos, sempre céleres a traçar ascendências entre os dedos abertos da mão esquerda, com o indicador direito a descobrir a avó (triste) e um par de bisavôs (tristes, pois claro). Os tristes não tinham nome: “Teu avô Xavier foi s’amanhar c’uma triste…”, escarrava-lhe a tia Isildinha (remediada dos quatro costados) quando deserdava as condutas de João, irreparavelmente reprováveis àqueles olhos inviolados pela nudez dos homens (e ignorantes da sua). Da esguia e seca solteirice, corroída pelo vinagre da idade, pingava um fel temperado na ilusão travada à umbreira de um casamento abastado. Longe estaria de conceber que o sobrinho, João, tinha já alçado o olhar para além da barreira.

Enamorou-se numa tarde de sábado. Mena, a benjamim dos Telles, subia a portada do avô Juvenal quando um saracoteio de vento lhe levou o chapéu de fita amarela. Foi buscá-lo aos pés de um João demasiado absorto no prado negro daqueles cabelos soltos para reparar no adorno evadido. Espertou quando o génio do cigarro lhe galgou os nós. À sua frente, sem jeito, Mena capeava uma espécie de desconforto. João curvou-se, tomou o chapéu, sacudiu-o e entregou-o à moça – não sem antes se perder na pele arrepiada que se incendiava sob os seus dedos (criteriosamente extraviados). Foi o bastante – e tão pouco que os impeliu a arranjar subterfúgios para encher o novo vácuo.

À noite, depois das ave-marias, uma pedrinha na vidraça dava o sinal. Sob a janela da abastada, seguro ao tronco do damasqueiro, o remediado alçava o braço para tocar a face da Lua. E, por momentos, a Lua baixava à Terra e definhava em cicios de uma luz maior.

Não tardou para que a rapaziada do sítio, zelosa dos velhos usos e fronteiras, descobrisse o rival que, da outra banda do córrego, vinha buscar mais do que lhe era devido pela condição e permitido pela geografia. Recorreram ao desencorajamento tradicional. Seguindo o costume, a denúncia pública do atrevimento adquiriu a forma de um mal-ajeitado tapete de colmo ligando (em escárnio) as casas dos enamorados. O acto, diligentemente executado durante a madrugada – à custa dos palheiros das redondezas –, dava o mote para o desfecho esperado.

Um verdadeiro bem-querer não se vende ao tempo. Não precisa de eternidade.

Naquela medida, havia o Amor. Deus disse: “Sê!” – e houve Fim.

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