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Memórias

Não se pode dizer que Ignácio tenha nascido com uma qualquer deficiência, o que, fosse esse o caso, lhe concederia desde logo o estatuto de “diferente”, e partindo desse conceito iniciaríamos esta história de uma maneira quase previsível, com uma moral e um desfecho da mesma maneira previsíveis.

Mas não… Ignácio nasceu normal, do que da palavra normal se possa conceber. Ou seja, Ignácio nasceu como sendo o mais normal do comum dos mortais. O tipo que ao longo do seu crescimento, da sua vida, portanto, em termos do que da beleza masculina se possa esperar, o que se esperou não foi grande coisa. E por isso, durante grande parte da sua vida, Ignácio sempre se sentiu como uma folha seca no Outono, a esvoaçar ao sabor do vento, que apesar de tudo, porque o vento por vezes para de soprar bem mais depressa do que é previsto, acaba por cair no solo, esquecida entre muitas outras folhas secas, não ignorada, não invisível, apenas olhada sem ser vista, longe da árvore de onde caiu, mas não longe o suficiente para dela se despegar, moralmente.

Ignácio tem umas pequenas e muito vagas memórias da sua infância, daqueles tempos em que, depois do nascimento e até aos cinco anos se sai de um mundo que se desvanece pela falta de lembrança que dele se leva para o futuro, até que, mesmo que de uma maneira muito ténue, se começa a ter os primeiros traços, as primeiras marcas da consciência, e são esses pequenos traços, essas pequenas marcas que ficam na memória, das quais ele lembra como recordações tão longínquas quão longínquos parecem ser as sensações colhidas desses breves momentos agora lembrados.

Uma viagem a Lisboa que pareceu demorar uma eternidade, tão eterna quanto parece agora a distância que o separa desse dia em que deveria ter pelo menos uns cinco anos de idade.

Dessa viagem a Lisboa, nas suas palavras, porque para falar de si mesmo, nada melhor e mais preciso do que as suas palavras, disse…

“Recostado no banco traseiro do carro, com a brisa quente que me bofeteava a cara e despenteava o cabelo, eu recordava a primeira vez em que tinha ido à capital, ainda bem tenro de idade, tão tenro que a memória que dessa ida guardava, eram apenas fragmentos que por qualquer razão me ficaram gravados na mente.

Da cidade em si pouco me lembrava, a não ser um emaranhado de carros a circular nas ruas, um punhado de luzes cintilantes espalhadas por quanto a minha vista podia alcançar, e acima de tudo, prédios que na altura achava enormes. Da cidade, na minha primeira visita era o que me estava gravado na memória, e mais do que isso, só os momentos que antecederam a viagem.

Lembro-me que fui despegado da cama ainda de madrugada. Era como se revisitasse o ainda pequeno baú das minhas memórias, e de lá tirasse a imagem da minha mãe que levava o dedo indicador em riste, aos lábios, como se me desse um sinal para não fazer barulho para que não acordasse os meus irmãos, e sentando-me em cima de uma mesa retangular que ficava num pequeno corredor entre a cozinha e o quarto dos meus pais, sonolento e mal disposto, pois a noite ia só a meio, e o sono estava ainda bem longe de ter terminado, a minha mãe enfiava-me nos pés umas meias brancas e calçava-me umas sandálias, indiferente aos protestos de um miúdo desejoso de regressar à cama.

– Não faças barulho já te disse. Vais comigo a Lisboa ver os tios. – dissera-me a minha mãe enquanto me dava os últimos retoques no cabelo e me ajeitava os colarinhos da camisa. Depois, outro dos fragmentos dessas recordações, foi ouvir um carro buzinar lá fora por duas vezes quase seguidas, sinal previamente combinado com o motorista desse mesmo carro, e a voz ensonada e pesada do meu pai que do quarto chamava, – Ta aí o homem do táxi.

O homem do táxi era uma espécie de taxista particular que naquela altura fazia fretes de longa distância.

Sendo uma época em que ter carro, era como ter um olho são em terra de cegos, o homem do táxi ditava o preço e o cliente nem sequer regateava. Era pelo menos esta a ideia que eu tinha em relação à viagem, que se tornou longa e cansativa, até porque o homem do táxi não era homem para grandes velocidades, e esse facto ficou mais do que bem vincado pela fúria do tio de testa alongada, à nossa chegada ao destino, onde ele nos esperava. – Porra pá… sete horas de Felgueiras até Lisboa? –  dizia o tio de testa alongada irritadíssimo, – eu na bicicleta da minha filha chegava cá mais depressa. Mas quem não foi na conversa foi o homem do táxi que deixava bem claro que, para ele primeiro estava a sua segurança e a dos seus passageiros, e se queriam um frete mais rápido, então na próxima o melhor era ir lá buscá-los na bicicleta da tal filha do tio de testa alongada, se é que a mesma tinha arcabouço para tanto. “

(O Patinho Feio – Primeira página)

António Magalhães

 

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