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Maria Luíza M. S. Dolci: a ficção para compreender nossa história

Professora de história por quase 30 anos, Maria Luíza M. S. Dolci estreou como ficcionista em 2021, com o romance “Um amor em Abaruna”. Em seu segundo livro, “Nas terras de Belém”, publicado no mesmo ano, romance histórico sobre quatro famílias que deixaram a Itália, no final do século XIX, rumo ao Brasil, em busca de sobrevivência, oferece ao leitor um painel histórico e social de duros tempos que exigiram resistência e coragem aos milhões de imigrantes que rumaram da Europa para a América do Sul. 

Em que momento da vida a descoberta do universo literário?

Por toda minha vida como leitora, mas, como escritora, o despertar veio após a aposentadoria como professora, aos 50 anos de idade. Mergulhei ainda mais na leitura com o tempo livre e me atrevi a rabiscar meu primeiro romance. Sem mesmo saber para onde iria, foi por pura diversão e experiência pessoal. Não contei para ninguém que estava tentando escrever. Nem mesmo para os mais próximos, estava ainda muito insegura quanto ao fato. Fiz um mini-curso on-line para escritores iniciantes. Depois de alguns meses, decidi contar para a família e consegui apoio e ajuda de três leitores betas, na família e amigos, que acompanharam a escrita do livro e sua finalização. Meu primeiro romance de ficção foi “Um amor em Abaruna” , publicado pela editora Mepe em junho de 2021. Logo que em seguida, no mesmo ano, publiquei um romance histórico: “Nas terras de Belém” pela editora Dialética.  Me considero ainda uma aprendiz, quero melhorar cada vez mais. 

A escolha pela formação em história se deveu a alguma razão especial?

Sempre me identifiquei com a disciplina, mas foi um professor maravilhoso, no ensino médio, quem me inspirou. Decidi seguir seus passos.

Que motivação a levou a fazer parte da AMUD – Amigos do Museu de Descalvado?

Recebi um convite para fazer parte de um seleto grupo de Descalvado, quase todos professores de história, para formar a primeira diretoria de uma associação que estava em vias de sair do papel. Me senti honrada em ser uma das escolhidas, ainda mais em parceria com pessoas que eu admirava,  como profissionais do setor da educação. Sem uma associação desse tipo, o museu não poderia ser inaugurado. A AMUD trabalha como parceira, sem vínculos políticos. E atua no sentido de garantir o melhor uso do repasse financeiro em prol das atividades culturais, pedagógicas e manutenção do acervo.

 Em três décadas dedicadas ao magistério, algum balanço a fazer? Quais os maiores desafios para a educação brasileira?

Tive uma carreira sólida no magistério. Me considero uma pessoa de sorte, pois exerci meu cargo efetivada por concurso em uma única escola pública estadual, na cidade de Descalvado,  onde nasci e vivo até hoje, no interior de São Paulo. Escola essa, onde também fui aluna por muitos anos. Na Escola Estadual José Ferreira da Silva, permaneci do mês da formatura na faculdade, até a aposentadoria, em 2018. Não é a mesma realidade vivida pela grande maioria dos docentes. Tive também uma grata experiência em trabalhar como professora em uma escola particular, por um período 15 anos e pude testemunhar a grande discrepância entre as duas realidades. Os desafios para a educação brasileira, a meu ver, estão em uma receita muito básica e sem mistérios: formação de bons profissionais, planos de carreira que estimulem o professor a continuar na profissão, principalmente com a oferta de melhores salários, pois muitos desistem logo no início da carreira e, é claro, mais recursos nas escolas. Mas, essa simples receita equivale a 50% do caminho andado. A outra metade cabe às famílias dos alunos, trabalhando em conjunto, como parceiras.  É de minha opinião que a escola não faz e não pode fazer tudo sozinha. 

O que falta para incentivar que o jovem leia mais em nosso país?

A família, como disse acima, dar o exemplo. Mas, também, o incentivo do educador, mostrando o caminho, para que o aluno visualize esse universo também na escola. No caso da escola pública, existe o obstáculo dos recursos. As bibliotecas são pequenas e mal servidas de títulos. Quando recebem livros, são poucas unidades e os professores não podem sonhar em ter um exemplar para cada aluno da turma. Fica muito difícil realizar um projeto de leitura com vários títulos diferentes. O incentivo deve começar em suas bases, nos primeiros anos de escolarização. No ensino médio, período escolar em que tive maior experiência como professora, muitos adolescentes chegam sem o hábito da leitura. E dificilmente o professor poderá mudar tal realidade. Isso somente ocorrerá em casos excepcionais. O uso do celular nos hábitos e cotidiano da maioria dos alunos já está enraizado.

Pode nos contar um pouco sobre os diversos projetos que idealizou para resgatar a memória familiar em sua cidade natal?

Quando comecei a investigar minhas origens como descendente de famílias italianas, tanto do lado paterno quanto materno, descobri um universo muito prazeroso de descobertas. Documentos, fotos, histórias muito interessantes envolvendo meus antepassados. Fui mergulhando nesse universo e descobrindo muitos sites e arquivos com uma gama muito grande de informações. Decidi incentivar meus alunos a também seguir esse caminho. Na medida que eles fizessem suas pesquisas e as documentassem, estariam também contribuindo para a preservação da memória familiar da nossa cidade. Ao longo dos anos, o projeto História das Famílias foi um diferencial na minha prática. Cada aluno construía um portfólio com todos os dados encontrados, que incluíam a árvore genealógica, documentos, fotos, entrevistas, pesquisas sobre a história da região de origem de suas famílias, etc.

Como foi enveredar pelos caminhos da ficção, ao escrever o romance “Nas terras de Belém”?

Descobri um universo sensível e criativo em um cantinho da minha mente. Um tanto romântica, confesso. Colocar no papel sentimentos e histórias dos meus personagens é incrível. Dou voz a eles e procuro deixar meu recado quando crio figuras femininas fortes, empoeiradas, à frente de sua época, personagens que enfrentam adversidades, preconceitos e injustiças. Aproveito meu conhecimento sobre a história para ambientalizá-los e sempre preocupada com o ensinar. Meu lado professora não me abandona. Leio muito, pesquiso, aprendo a cada dia sobre a história da minha cidade e região e procuro compartilhar as descobertas nos meus textos.

“Nas terras de Belém”, ao abordar a imigração italiana ao interior de São Paulo, no final do século XIX, elucida as agruras de milhares de imigrantes em busca de uma terra prometida, sonho que, muitas vezes, virava pesadelo. O que dizer do fluxo imigratório daquele período e quais os maiores percalços enfrentados pela maioria dos imigrantes que aqui chegavam?

Toda a narrativa do meu livro se passa no ano de 1892. Conforme minhas pesquisas avançavam sobre a época e eu criava o ambiente onde meus personagens viveriam suas histórias pessoais, eu me convencia de que todos os problemas que enfrentaram no processo de imigração para o Brasil não poderiam ser mais atuais. A história se repete. Hoje o mundo acompanha novas ondas migratórias, impulsionadas pela pobreza, guerra e esperança de uma vida melhor longe da sua terra natal. Novas epidemias apareceram sacudindo a humanidade e forçando-a a repensar valores. Ainda convivemos com preconceitos relacionados a questões étnicas. Os imigrantes italianos que aqui chegaram traziam uma única bagagem: esperança! Enfrentaram todos os tipos de dificuldades, mas venceram, pelo menos, grande parte dos milhares que aqui chegaram. Antes deles, os negros, de descendência africana. Esses últimos, venceram? São questões atuais que precisam ser assimiladas, aprendidas em suas origens para que ocorra uma desconstrução dos estereótipos maldosos que ainda se encontram presentes. A história nos ensina, não devemos dar as costas a ela.

Entre os italianos, havia uma série de diferenças culturais e linguísticas. Como elas foram apaziguadas em solo brasileiro?

A língua foi um grande obstáculo a ser vencido no Brasil. A Itália, no final do século XIX, era ainda um país em construção, após a guerra de unificação. O país era um mosaico de várias línguas e regionalismos. Os próprios imigrantes tinham dificuldades de se comunicar entre si e ainda havia a questão dos que vinham para cá, oriundos da região norte, até o início do século XX, que não se identificavam como italianos. Grande parte era de nacionalidade austro-húngara, apesar de falar dialetos ligados à cultura italiana. Essas diferenças entre eles foram sendo superadas aos poucos, conforme os vários grupos de imigrantes sentiram a necessidade de ficar unidos para o enfrentamento dos problemas do cotidiano, como em relação ao trabalho e às novas regras e leis que encontraram aqui. Formaram associações de apoio e procuraram manter vivas suas tradições, principalmente na culinária. Os italianos somente passaram a se identificar como tais, depois de 1914, quando a Itália despontou como uma potência emergente, defendendo seus interesses territoriais no cenário da Primeira Guerra Mundial. Desenvolveu-se entre eles um sentimento de orgulho e pertencimento a uma nação.

Novos projetos? 

Estou muito feliz e empolgada na escrita do meu terceiro livro, ainda sem título, mas trata-se de uma continuação de “Nas terras de Belém”. Dando sequência à história das quatro famílias que vieram para minha querida terra, Descalvado. Pretendo explorar os percalços vividos pela segunda geração dos imigrantes italianos. Acredito que ainda neste ano eu o conclua e seja publicado.

Sobre o autor: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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