De que está à procura ?

Colunistas

Marcio Trinchinatto: o teatro e a literatura ao serviço do afeto

Formado em Teatro pelo Célia Helena Centro de Artes e Educação, Marcio Trinchinatto descobriu na infância a paixão por representar. Ainda jovem, encontrou na atriz Célia Helena uma grande mestra, tornando-se seu assistente. 

Sua forte ligação com a obra de Lygia Fagundes Telles levou-o a adaptar para o teatro o conto A Confissão de Leontina, no qual interpreta uma das mais complexas e intrigantes personagens da premiada escritora brasileira, falecida em 2022.

Professor de Teatro em escolas de nível médio, há pouco estreou literariamente com o livro “ A Menina que Conversava com a Estrela”, que com rara sensibilidade discorre sobre a finitude da vida e o afeto, mesmo em relação àqueles que não mais se encontram fisicamente entre nós.

Em que fase da vida descobriu o teatro?

Não sei se houve uma fase específica para descobrir o teatro em mim. Posso dizer que as primeiras peças na escola me entusiasmaram muito e acenderam uma luz que me trouxe até aqui, mas também me lembro do Marcio criança, que brincava com uns carrinhos no chão de cimento do quintal, onde desenhava as ruas, as residências e uma Casa de Show, onde meus personagens artistas (que podiam ser bonecos playmobil ou pedaços de madeira) se apresentavam. Naquela época, eu  sintonizava meu radinho de pilhas no Programa Barros de Alencar, para ouvir As 7 Campeãs, cantava e dançava, brincando ser os personagens-cantores.  Além disso, as histórias que meus “pedaços de madeira” vivenciavam eram em primeira pessoa e eu brincava de me emocionar dando vida a eles. Ainda na infância, foi na escola pública que fiz minha primeira apresentação, na Festa do Folclore. Era uma peça sobre a Vitória Régia e eu era um índio. Devia ter uns sete ou oito anos, mas marcou. Mais tarde, lá pelos onze ou doze anos, conheci um professor que mudou minha vida, Ernesto Motooka. Ele era professor de Educação Artística e abria a escola pública aos domingos para ensaiar teatro. Fizemos muitas peças, entre elas O Auto da Compadecida e até Casa de Bonecas, do Ibsen. Hoje penso na sorte que tive ao conhecer grandes obras na adolescência. Foi sensacional. Talvez, seja essa a fase em que eu descobri uma forte ligação com o palco, pois a partir desses anos na escola, passei a procurar grupos amadores. Eu já sabia o que queria, mas não sabia como traçar uma estratégia e nem tinha apoio. Participei de vários grupos e acabei finalmente entrando no Antunes Filho, que era considerado o Papa do Teatro, com o seu Centro de Pesquisa Teatral ( CPT), no Sesc Vila Nova.

Pode nos contar um pouco sobre sua formação no teatro e nas artes?

Foi a partir da minha dispensa do CPT que eu perdi o chão e as esperanças de trabalhar com o Antunes. Resolvi que não voltaria para o grupo amador do qual eu tinha participado por anos, pois estava decidido a me profissionalizar. Liguei e visitei várias escolas, mas a distância e alguns outros pontos me faziam desistir de ingressar nelas. Foi então que o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões do Estado de São Paulo (SATED) me informou que o Teatro Escola Célia Helena estava abrindo sua primeira turma profissionalizante. Depois do trabalho, peguei o metrô e fui até o bairro da Liberdade, em São Paulo, bater no número 113, da Rua Barão de Iguape. E aí aconteceu uma coisa engraçada, nunca esperei encontrar a Dina Sfat na porta da sala de teatro que leva seu nome, nem Bibi Ferreira. No entanto, ao tocar a campainha daquele teatro, fui surpreendido ao ver a prória Célia abrir a porta. Completamente atordoado ao encontra-la ali , fiz a pergunta mais tola que poderia fazer, quis saber se ali era o Teatro Célia Helena. Ela riu e disse que sim. Pronto, a mágica estava feita. Disse-lhe que queria me matricular e, ao subir a escada que levava até a sala dela, tive a certeza de que havia encontrado meu lugar.Afinal, se a Célia seria minha professora, como poderia eu não me tornar um ator? Tive os melhores professores de teatro que poderia imaginar. Fui aluno de Célia Helena, Elias Andreato, Renato Borghi e Gianni Ratto, do Piccolo Teatro di Milano. Também fui aluno de voz de Mylene Pacheco, a lenda da EAD, assim como de Celina Fuji, nas aulas de corpo. Foram anos incríveis. O Teatro Célia Helena era artesanal e todos os alunos se conheciam e trocavam experiências. Estudei muito. Li muito. E nem parecia esforço, pois estar no palco foi se tornando muito natural para mim. Depois que me formei no Célia, fui fazer outros cursos de interpretação. Estudei com Beto Silveira, fiz oficinas com Renato Borghi e também estudei um pouco na HB Studios de Nova York. Muitos anos depois é que entrei para um curso superior de  Educação Artística.

Tornar-se professor de teatro foi uma opção? Com tem sido essa experiência?

Não. Professor de teatro foi algo que aconteceu sem que eu soubesse que seria esta a função que garantiria meu futuro. Eu e Célia Helena nos tornamos muito amigos. Eu era chamado de “peixinho da Célia” e sempre disse que, se fadas-madrinhas existem de fato, a Célia foi a minha. Devo ter sido um aluno muito bom e falo isso ao observar minhas notas, mas o que me ligava a Célia era ainda maior. Descobrimos que nascemos no mesmo dia, 13 de março e costumávamos nos parabenizar com café e um pedaço de bolo no escritório dela. Mas foi a amizade linda e minha devoção pelas palavras e atitudes que ela manifestava como artista que me fizeram abandonar uma carreira promissora, o que a deixou muito preocupada. Eu trabalhava com exportação para uma empresa alemã e estava prestes a receber uma promoção e resolvi abandonar o emprego. Lembro-me de que no dia em que pedi as contas, fui para a aula e disse-lhe que não trabalharia mais em escritório. Eu estava confuso e inseguro e ela me disse que eu tinha feito besteira, pois não daria para eu viver de teatro, ainda mais como aluno. Dois dias depois, a Célia ligou para minha casa e notei que ela falava com minha mãe. Quando atendi o telefone, ela pediu para que eu fosse mais cedo à aula, porque queria falar comigo. Fui e quando cheguei ,ela me disse que já sabia o que eu poderia fazer, ser seu assistente. Foi um grande privilégio. Eu cursava o terceiro termo e virei assistente da Célia Helena. Era uma coisa que eu jamais havia pensado. Para mim, ser assistente da Célia era apenas sentar-me ao lado daquela grande atriz e observar como ela dava as aulas. No entanto, toda aquela confiança que depositada em mim tinha uma razão, em breve ela sairia em viagem com o espetáculo Os Pequenos Burgueses. Acho que ela enxergou alguma outra possibilidade em mim e me deixou por dois meses com os alunos. Foi uma loucura. Eu cursava o terceiro termo e assumi as aulas do segundo. E deu muito certo. Quando ela voltou, fez elogios sobre a montagem que eu tinha feito e disse estar surpresa com o progresso de alguns alunos. Passei ,então, a assumir a função de assistente em todas as turmas em que ela dava aulas, até que um dia fui novamente chamado para uma conversa e ela me disse que havia uma diferença no nosso modo de conduzir as aulas. Por um instante pensei que aquilo era minha demissão, mas ela sorriu e disse que preferia o meu jeito, pois eu era mais jovem e irreverente. Isso contribuía para a comunicação com os alunos. Tornei-me professor. Se fadas madrinhas existem, a Célia Helena certamente foi a minha. Dei aulas ali por muito tempo e era também chamado para dar aulas em outros colégios. Mais do que isso, fiz minha estreia profissional ao lado dela, em Laços Eternos, dirigido pelo grande Renato Borghi, que havia sido meu professor e também ensaiava um espetáculo do Tchekov, quando ela precisou se afastar para um tratamento de saúde. Seríamos apenas nós dois no palco.

A educação em nosso país tem cumprido seu papel quanto à importância da arte em nosso cotidiano?

Não. Há tempos vivemos um hiato de pensamento. Temos escolas maravilhosas em São Paulo e a SP Escola de Teatro é uma delas. Existem pessoas muito engajadas na discussão de como fazer arte. No entanto, o imediatismo predomina. Quando estudei no Célia Helena, existia um quadro onde se lia que “o estudo se faz num canto, em silêncio, sem alarde; o que importa é que ele exista como proposta”. Hoje percebo exatamente o alarde que se faz pelo nada. Em colégios privados, muitas vezes precisamos dar medalhas,  pelo fato do sujeito ter apenas levado o texto de trabalho. Outros descobrem a fórmula de subir ao palco para destilar veneno com piadas. Sem contar aqueles talentos do Tik Tok. E algumas escolas também estão muito voltadas para o resultado e se esquecem do processo.

Dos trabalhos em que atuou como ator ou diretor, algum que mereça maior destaque?

Guardo com muito carinho todos os trabalhos. São fases da minha vida. Laços Eternos marca minha estreia como ator profissional, ao lado de Célia Helena, Bárbara Bruno, Regis Monteiro e Francarlos Reis, entre outros. Eu era novinho e ficava encantado ao vê-los brincando nas coxias e, em seguida, tirar lágrimas da platéia. Também guardo com muito carinho o Eduardo, de O Mambembe, no Teatro FAAP, sob direção de Kleber Montanheiro. Eu me divertia tanto e por várias vezes tive aplausos em cena aberta. Como diretor, acho que Namoro, meu primeiro trabalho e as primeiras dívidas,  no Teatro Maria Della Costa. Tempos difíceis e uma insegurança absurda ao dirigir a grande Nydia Licia (que havia sido minha professora e diretora) em uma participação em vídeo, para meu primeiro trabalho.  Também amei dirigir a minha querida Cia Teatral Mater Amabilis, em Cinderella e Madagascar, espetáculos que levaram mais de 4.000 pessoas para as temporadas populares que fizemos nas periferias de Guarulhos. Olhávamos as platéias lotadas e caíamos no choro a cada final de espetáculo.

Como se deu o processo de adaptação do conto “A Confissão de Leontina” para o teatro?

Pensei em uma adaptação que pudesse levar o espectador para vários lugares antes de revelar onde a personagem estava e o porquê do título A Confissão de Leontina. Precisei conhecer profundamente o texto para dividi-lo em cinco unidades. A leitura do conto nos deixa enternecidos, porque entramos juntos na história da protagonista, mas resolvi mudar a ordem dos acontecimentos para chegarmos a um retrato mais cruel e arrebatador, ao final de cada espetáculo. No lugar do enternecimento, procurei a surpresa, o mergulho no escuro. Por se tratar de um monólogo, resolvi colocar o público em constante estado de tensão e atenção, sempre com as emoções à flor da pele.

Encarnar uma frágil personagem feminina num denso monólogo como “A Confissão de Leontina”, o que mais exigiu de você?

Precisei vencer alguns medos antes de tudo. Apesar de saber da responsabilidade que era levar ao palco a excelência e força do texto de Lygia, eu pedi ao Kleber Montanheiro que imaginasse o público no meu colo, rindo e chorando, enquanto eu contava uma história. Sabendo a trajetória da Leontina, quis manter a surpresa viva durante os 75 minutos que eu ficaria sozinho no palco,  com um cenário minimalista, sem nenhum objeto de cena e com um figurino neutro. Somente a palavra poderia revelar. O desafio veio quando vi todas essas coisas que havia pensado juntas. Não existia outra maneira de fazer o espetáculo, a não ser me rasgando e sangrando todas as noites. Estava sozinho e não poderia fazer menos do que imaginei. Pensei nos grandes mestres que me inspiraram na vida e na arte e quis fazer um espetáculo arrebatador, com ênfase na palavra bem falada. Optei por um caminho que exige muita atenção,  emoção à flor da pele e a escuta absoluta. Em cena, consigo ouvir alguns refletores acenderem, o riso, sufocado ou explícito,  da platéia e alguns soluços. São termômetros que me guiam durante o espetáculo.

O que o levou a escrever “A Menina que Conversava com a Estrela”, seu primeiro livro, há pouco publicado?

Sempre gostei muito de escrever. Ainda aluno do fundamental I, antigo primário, eu me divertia muito quando escrevia as redações nas aulas de Português e incluía os nomes dos meus amigos de sala em situações bizarras. Minha mãe até foi chamada para conversar com a professora, pois ao escrever eu “matava” meus amigos mais próximos, colocava-os em um avião que caia sobre a casa de algum professor, abduzia alguns e os transformava em coisas estranhas.Também escrevia coisas boas, alguns ganhavam o Oscar (eu amava assistir a entrega do prêmio na TV), outros se casavam, etc… Minhas redações sempre eram lidas em voz alta. Nesses momentos, ficava orgulhoso e pensava em como escrever a próxima.Mas voltando à sua pergunta, a ideia inicial do livro “A Menina que Conversava com a Estrela” surgiu durante uma fase muito difícil, quando uma aluna que fazia um personagem na peça que eu dirigia teve que se ausentar para tratar de um câncer. Tornei-me amigo da família e acompanhei parte de seu tratamento, fazendo visitas no hospital e, posteriormente, em sua casa. Observei, em silêncio, aquela relação entre mãe e filha e pensei em registrar algo, mas não consegui. Tempos depois, quando minha aluna se curou, perdi minha mãe. Em pouco tempo, tive que lidar com o medo e a morte em si. Então, durante esse período, a personagem Lara surgiu como uma ideia de falar para outras crianças sobre a finitude e a necessidade de ser transparente e honesto com a vida. O nome da personagem principal, assim como o de tantos outros personagens, repete a dinâmica daquele aluno que eu fui, todos passaram pela minha vida de uma forma ou de outra. Resolvi, depois de adulto, voltar a escrever uma ficção usando os nomes de pessoas conhecidas.

”A Menina que Conversava com a Estrela” é uma história que propõe, antes de tudo, darmos vazão ao afeto. Como ela tem sido recebida pelos leitores?

Eu não fazia ideia da dimensão do impacto do livro para algumas pessoas. Tenho sido presenteado com alguns comentários que me fazem refletir sobre o poder que ele tem, apesar de tê-lo escrito de maneira absolutamente despretensiosa. Eu queria falar de afeto que transcende nossa passagem por aqui. Queria falar de pessoas queridas que não estão fisicamente por perto, do plantio da bondade e do retorno de nossas ações. Os leitores que conversam comigo apresentam isso tudo e ainda apontam coisas maravilhosas. Recentemente, fui conversar com alguns alunos de uma escola da Zona Norte de São Paulo, que leram o livro. Quando entrei no auditório do colégio, meus olhos transbordaram de lágrimas ao ver tantos desenhos inspirados no meu trabalho. Havia desenhos tão sensacionais que eu fiquei sem palavras. Personagens de mãos dadas, imagens de anjos ligadas à figura da mãe da protagonista e uma folha dividida ao meio com a personagem desenhada duas vezes, na primeira metade ela estava chorando e na outra metade ela tinha um sorriso e uma lágrima com um balão de pensamento que dizia “agora minha mãe é uma estrela”. Chorei baixinho, pois identifiquei a minha própria mãe.Também conversamos sobre o que teria acontecido com o pai de um personagem que é preso na hisória. A maioria achava que pudesse ser um assassinato a causa da prisão, mas conversamos sobre o que não faz bem e chegamos a falar de preconceito, que pode começar na escola, corrupção e outras coisas. Foi fantástico.

Novos projetos em andamento?

Sempre! Estou querendo levar A Confissão de Leontina para outras cidades e gostaria muito de levar o espetáculo para Portugal, onde Lygia Fagundes Telles ganhou o Prêmio Camões. Farei apresentações em algumas cidades do interior e estou buscando novos espaços para apresentar o espetáculo.  Também tenho uma peça escrita durante a pandemia, que eu classifico de Thriller Cômico e pretendo começar a ensaiar. É um texto que fala sobre um pequeno ato que nos leva da civilidade à barbárie. E acabei de ler o “Pequeno Manual Antirracista”, da maravilhosa Djamila Ribeiro, que agora ocupa a cadeira de Lygia, na Academia Paulista de Letras. E minha cabeça já começou a me provocar com alguns pensamentos sobre um novo livro para crianças.Vai saber onde isso vai dar!

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte de Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA