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Manhã de Inverno

Cai a neve, sem querer saber, sobre a multidão absorta, na mais pura indiferença polar. Corro ao acaso, refugio-me do papão chamado solidão, sonhando com um anjo do Daugava que num dia longíquo, na idade da nossa inocência, cantou para mim canções da Primavera, com sinos nos dedos e um chá de hortelã-pimenta nos lábios.

As pessoas gulosas nas lojas repletas das últimas novidades prepararam gordo o Natal. Querem peúgas pesadas suspensas nas chaminés, querem sapatinhos recheados como perus, querem, como se o querer bastasse e não o crer. Não acreditam nem reparam que a lareira está apagada e fria, que ninguém cuidou de alimentar a chama e que os sapatos há muito estão sem sola.

Casacos grossos e quispos, gorros e luvas de lã para não deixar entrar a realidade. O homem cria bolhas para viver assim, refugiado de tudo, escondido de si. Bolhas de lã, bolhas de lona, bolhas de cabedal, bolhas de seda e poliéster, de cimento e tijolo, de ferro e aço, de vidro e plástico, bolhas de ar, invisíveis, bolhas imaginárias e intocáveis, bolhas que não existem, virtuais, paranóicas e esquizofrénicas… O homem vive num tubo de ensaio a ensaiar-se a si próprio.

Passa uma ambulância estridente, a mãe ralha com o menino que deixou cair o waffle com creme no chão, um casal discute, outro beija-se, uma rapariga olha-se ao espelho no reflexo da montra de vestidos de noiva, um puto de auscultadores nas orelhas vestido de baggy-trousers arrasta os ténis all-stars pelo passeio, fugitivo virtual de um mundo que não o quer e do qual ele foge por não o querer que não o quer por ele fugir dele. De um tímpano ao outro, a grande doses de decibéis perfuradores, injecta-se com revolta, inventa revoluções que não passarão de grandes teorias e do seu estado semi-onírico, porque é demasiado difícil mudar o mundo, mas ainda é mais difícil mudar-se a si próprio. “Toda a gente pensa em mudar a Humanidade, mas ninguém pensa em mudar-se a si mesmo”, já não sei quem disse isto… Pensar que o erro nunca está em nós é o primeiro erro. Pensar que o erro está sempre em nós é anemia da alma. A virtude está no meio. Algures no meio de nós. Como o coração.

Duas adolescentes de quispos fluorescentes, jeans rebaixados e apertados, botinas cor de rosa berrantes, rimel egípcio nos olhos, conversam sobre pães, emoções, sentimentos, amor e sexo, deitando-se assim de costas sobre a sua infância, tentando ainda escapar-lhe. Todos nós tentamos sobreviver à nossa infância, à nossa adolescência, à nossa família. A idade adulta chega quando nos voltamos a reconciliar com todos eles e connosco também. Há quem nunca fique adulto. Há quem nem sequer tenha consciência disso.

Pensando na minha vida, cruzando as artérias principais da minha alma. Sorvo o café, como o faço com a vida, amarroto o guardanapo de papel como os meus dias, lambo o colher como a esperança, rasgo aos bocadinhos o pacote do açúcar como a minha alma que espalho sobre a mesa em pó. Sujei o pires e a mesa de mármore preto com migalhas da minha existência.

A empregada adolescente limpa a mesa. Asiática, gira, demasiado magra, tem dentes salientes que lhe estragam os sorrisos demasiado frequentes, como se quisesse sempre agradar. Peço outro cappuccino, numa chávena grande. Ela esmera-se. Demora dois minutos e vinte segundos a servir-me, com um largo, rasgado, aberto, inocente, generoso, acolhedor, hospitaleiro, caloroso, servil sorriso. A chávena já não é a mesma. Esta tem o meu nome estampado em várias cores. Sorrio da coincidência e da inconsciente clarividência. O que a fez escolher está chávena mais do que outra qualquer? Foram as energias universais que canalizaram as ondas fraquejantes emanando do meu cerebelo até ao impulso eléctrico do neurónio da empregada que lhe comandaram, à retina e à mão, a escolha desta xícara? Estas coisas acontecem todos os dias, é o que dizem os serependicistas.

Jogado num canto, inventado fins do mundo, como se o mundo lá fora não bastasse, torturo a mão, a caneta e este papel que mais tarde será feixes electrónicos de luz num ecrã de computador, mas merecia melhor sorte, não merecia?, como ser origami ou caderno ordenado de aluno assíduo que ainda acredita que o mundo é redondo. Em vez disso é antro, receptáculo alacre e sedento (obrigado, Gedeão pela deixa!), baú de inépcias tempestuosas, mundo quadrado e fechado, introspectivo, introvertido, frustrado…

– O que transportas aí?…, interpela-me o divino, com a cabeça fora da máquina e o dedo inquisidor, apontando o meu colo.

Segurando o meu caderninho imbecil contra o meu peito febril, como um idiota, respondo timidamente, num orgulho dissimulado e arrogante:

– São letras, Senhor!

E num gesto grandiloquente e generoso, como o fez ao mar um dia, Ele abre o meu colo, de onde brotam poemas e prosas como rosas.

– É milagre, Senhor! , exclamo em êxtase.

– Não, idiota, sou Eu que escrevo direito por linhas tortas!

 

JLC10122010 (in “Diário de A.”)
Foto: JLC

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